A Antropologia e seus deslizamentos: uma ciência
poética ou a poética da ciência?
“O
confronto da antropologia com a literatura é imprescindível”.
Inicio
este breve ensaio com a assertiva de Laplantine (2011: 174) e já vou, dessa
maneira, desvelando o porvir de minha escrita liminarmente situada entre a
Antropologia e a Literatura.
Uma, em princípio, ruptura entre as
ciências ditas humanas e uma escrita literária ocorreu em fins do século XVIII
e ao longo do XIX impulsionada, primordialmente, pelo Iluminismo e pela grande
virada científica daquele período, a qual primava, em primeiro plano, pelo
rigor teórico-metodológico, buscando não abrir espaço para quaisquer
possibilidades de abalo em suas verdades.
A Poietké fora problematizada ainda entre os gregos antigos com
preocupações semelhantes às da contemporaneidade. Para ilustrar tal fato,
permito-me aqui fazer uma oportuna analogia dessa ruptura acima citada com a
expulsão dos poetas no livro X d’A República,
de Platão, para o qual o caráter imitativo é parte da realidade humana, no
entanto estaria longe da essência ideal do ser e, portanto, não seria algo
proveitoso para a formação de pessoas virtuosas, daí tal expulsão pela função
menor atribuída a estes poetas, apesar de, contraditoriamente, a própria
República estar contida no mundo das ideias platônicas. O próprio Platão afirma
que: “Portanto, a arte de imitar está bem longe da verdade, e se executa tudo,
ao que parece, é pelo fato de atingir uma pequena porção de cada coisa, que não
passa de uma aparição” (2007: 296).
Em contrapartida, o discípulo de
Platão, Aristóteles, na Poética, faz
a defesa da imitação (mimese) como algo imanente à natureza humana que, para
além da katharsis (prazer,
purificação), contribui para engrandecer o conhecimento humano, tendo a
possibilidade de ser mais importante que a história propriamente dita. O filósofo
afirma (2008: 91) que
No que diz respeito à imitação através da narração e em verso, é
necessário, como nas tragédias, construir enredos dramáticos e em volta de uma
acção única e completa que tenha princípio, meio e fim, para que, tal como um
ser vivo único e inteiro, produza um prazer próprio e, evidentemente, a sua
estrutura não deve ser igual a das narrativas históricas, nas quais é forçoso
que se faça a exposição não de uma só acção, mas de um só período de tempo, de
tudo o que, nesse tempo, aconteceu a uma ou a varias pessoas, cada uma das
quais se liga às outras como o acaso determinou.
Com
essa breve analogia, busco mostrar que, de fato, a preocupação em se transmitir
algo factualmente verdadeiro é corrente na história da humanidade, óbvio que
com suas diferentes nuances ao longo do tempo, influenciando inclusive na
conformação das ditas disciplinas científicas, interessando-me aqui a ciência
antropológica
A
possibilidade de percepção de uma forte subjetividade – com status de verdade -
no texto antropológico tem como paradigma, segundo Strathern (2013), os Argonautas do Pacífico Ocidental, de
Malinowski, devido ao estilo retórico de escrita deste autor. No entanto,
Strathern vai além e percebe traços de certa literariedade nos escritos
evolucionistas culturais de James Frazer, recuperando seu texto chamado Folk-lore in the Old Testament, no qual
ela observa que Frazer se vale de um contexto de vida influenciado pela
literatura, pela bíblia e pela própria etnografia para construir uma narrativa
una. Desta maneira, a autora busca desconstruir o desnível abissal existente
entre uma Antropologia pré-malinowskiana e uma pós-malinowskiana, justificando
tal intenção por meio da quebra de uma compreensível dureza, em princípio, de
um texto científico com base evolucionista.
Acerca da escrita propriamente etnográfica,
Strathern (2013: 44-45) afirma que
Preparar uma
descrição requer estratégias literárias específicas, a construção de uma ficção
persuasiva: uma monografia precisa estar arranjada de tal maneira que possa
expressar novas composições de ideias. Essa se torna uma questão sobre sua
própria composição interna, a organização da análise, a sequência pela qual o
leitor é introduzido a conceitos, o modo como as categorias são justapostas ou
os dualismos são invertidos. Dessa forma, quando o escritor escolhe (digamos)
estilo “científico” ou “literário”, ele assinala o tipo de ficção que faz; não
se pode fazer a escolha de evitar completamente a ficção.
Isto
é, para a autora de forma geral, o modo como se é composto o texto etnográfico,
inevitavelmente, recorre a elementos que seriam, a priori, inerentes a ficções literárias. Independentemente de se
optar ou não por um estilo propriamente rígido (texto científico) ou mais
literário. Ou seja, de qualquer maneira o aspecto ficcional estará presente em
ambos.
Nessa
linha, François Laplantine (2011: 181) em seu Aprender Antropologia observa traços de poeticidade em narrativas
de viagens, bem como marcas etnográficas em textos literários (romances) e
sintetiza que os pontos de vista de cada um, tanto o do romancista quanto o do
etnólogo, esforçam-se por serem totais, mas não absolutos, isto é, intentam em
apreender a realidade de forma relativa. Nesse sentido, o autor estabelece a conexão entre a Antropologia
e a Literatura alicerçado em escritos de viagem. Tais escritos corroboram para
as discussões em torno das relações entre cultura, identidade e sociedade, pois
é no encontro fronteiriço com o Outro que emergem as diferenças, os hibridismos
e relações de poder em um dado momento histórico. Neste sentido, Laplantine
afirma que o escritor, ao relatar estes deslocamentos, não faz um trabalho
literário apenas, mas afirma, sob um enfoque contemporâneo, que há também um
labor etnográfico em torno dessas movimentações em seus escritos.
Chateaubriand, Melville, Conrad, Cendrars, Gide, Baudelaire, Artaud, entre
outros autores figuram na vasta lista desses escritores de viagem.
Miguel Vale de Almeida, ao destacar a relação entre
Antropologia e Literatura, defende a necessidade de se colocar “o dedo na
ferida da produção” (2008: 02). Para o autor, tal ferida é revelada quando se
confronta o olhar literário ao antropológico, no que tange ao aspecto sociocultural,
isto é, quem daria conta de uma observação mais detalhada da realidade: um
romance ou uma monografia etnográfica?
Nessa
linha de raciocínio, verificam-se, atualmente, indícios de uma maior
aceitabilidade pelo antropólogo do texto literário como ferramenta auxiliar nas
investigações socioculturais. Como arremata Rita Chaves (apud Almeida 2008: 205) afirmando que
(...) a
Antropologia integra-se à Literatura, formando uma espécie de cadeia
multidisciplinar mais apta a melhor flagrar alguns dos movimentos da dinâmica
cultural encenada nesse cenário particular que segue semeando perplexidades e
impondo a necessidade de novas formas de abordagem.
Marcel Mauss (1902) também reflete acerca da
intrínseca relação da Antropologia com a Literatura ao versar em escritos do
missionário inglês Henri Callaway. O antropólogo termina por comparar o método
do religioso na composição de seu livro sobre a religião dos Amazulus com o
utilizado pelos irmãos Grimm na coleta de alguns de seus contos.
Nesse sentido, tenho ciência de que a Literatura,
em particular o romance, é, em si, observação detalhada da realidade, ampliação
das significações do real na ficção, daí a possibilidade de sua aproximação com
a etnografia.
Roman
Jakobson (1985: 17), em seu ensaio intitulado A linguagem comum dos linguistas e dos antropólogos contido no
livro Linguística e Comunicação, faz interessante comentário acerca da
questão da linguagem sob uma ótica transdisciplinar afirmando ser importante
para o âmbito dos estudos linguísticos a contribuição advinda dos estudos
antropológicos, principalmente no que diz respeito à questão cultural enquanto
centralidade, concebendo assim a linguagem enquanto manifestação cotidiana da
vida social de uma dada comunidade. E arremata o linguista russo acerca da função
poética da linguagem na sua relação com o dia a dia (idem: 21)
Essa função
poética, entretanto, não se confina à poesia. Há uma diferença na hierarquia:
tal função pode estar subordinada e outras funções ou, ao contrário, aparecer
como a função central, organizadora, da mensagem. A concepção da linguagem
poética como uma forma de linguagem onde a função poética é predominante
ajudar-nos-á a compreender melhor a linguagem prosaica de todos os dias, em que
a hierarquia de funções é diferente, mas em que tal função poética (ou
estética) tem necessariamente um lugar e desempenha um papel tangível tanto do
ponto de vista sincrônico como sob o ponto de vista diacrônico.
Uma poética que,
a meu ver, desvela, por meio da linguagem, o cotidiano, trazendo à tona suas
particularidades e dialoga, neste trecho em particular, com o que escrevera
James Clifford tempos depois em excerto retirado da parte introdutória de A Escrita da Cultura (Writing Culture) (2016:
60), ao abordar acerca da
literariedade no texto etnográfico:
A “poesia”
não se limita ao subjetivismo romântico ou moderno: ela pode ser histórica,
precisa, objetiva. E, evidentemente, ela é tão determinada, convencional e
institucionalmente, quanto a “prosa”. A etnografia é uma atividade textual
híbrida: ela atravessa os gêneros e as disciplinas. Os ensaios neste volume não
defendem que a etnografia seja “apenas literatura”. Mas insistem em que ela é
sempre escrita.
Clifford esclarece, em síntese, que tanto a poesia quanto a prosa e suas
poéticas não estão limitados ao aspecto literário. De maneira similar, o texto
etnográfico transcende a qualquer encaixotamento disciplinar.
Ainda na esteira de Clifford no que tange ao texto
etnográfico o autor destaca a emersão de vozes por meio da alegoria enquanto
parte do texto etnográfico no momento da textualização. O crítico reflete no
texto Sobre a alegoria etnográfica (Idem: 155) que questões específicas, as
quais possuem as informações provenientes do fazer etnográfico, não podem ser
limitadas a uma descrição somente científica, e sim tornar compreensível outras
formas de vida em suas subjetividades.
Nesse sentido, o autor enfatiza seis pontos
referentes a um novo olhar sobre a Antropologia, baseado em uma fazer
etnográfico assentado na observação participante. Primeiro, a vivência com o
objeto de estudo; segundo, o uso da língua nativa pelo pesquisador; terceiro,
uma observação participante que enfatiza o aspecto visual; quarto, o
conhecimento da estrutura social de uma dada comunidade; quinto, em termos
culturais, as partes concebem o todo cultural; sexto, o presente etnográfico, o
tempo de pesquisa para o conhecimento de uma cultura. Para Clifford, tais
nortes tinham a função de caracterizar uma etnografia eficiente, com esteio em
uma observação participante, na junção de experiência e interpretação.
Essa junção entre experiência e interpretação, no
que diz respeito à autoridade etnográfica, confere ao etnógrafo, segundo
Clifford, o “eu estava lá”. O pensamento de James Clifford dialoga intensamente
com o de Geertz (2009), no que tange ao “estar lá” que, para o segundo, é
comprovado por meio da escrita e revela o afetar e o ser afetado do antropólogo
enquanto autor de suas etnografias, preocupação acentuada, primordialmente, em
função da publicação, em 1967, dos diários de campo de Malinowski acerca de sua
experiência nas ilhas Trobriand. Os diários malinowskianos obtiveram enorme
repercussão pelo descortinamento das agruras do pesquisador em campo, verdadeira
materialização do paradoxo existente entre o “estar lá” e o “estar aqui”. Segue
um pequeno trecho do referido texto (1997: 50):
Domingo, 27.09. Ontem fez duas semanas que estou aqui. Não posso dizer
que venha me sentindo bem fisicamente. No sábado passado fiquei extenuado na
excursão com Ahuia, e não consegui me recobrar ainda. Insônia, (não muito
acentuada), coração sobrecarregado e nervosismo (principalmente) parecem ser os
sintomas, ate agora.
A alusão que se faz a Geertz está presentificada em
seu livro Obras e Vidas: o antropólogo
como autor. Nesta obra, Geertz traz como eixo de discussão a etnografia
enquanto gênero, no entanto, destaco aqui o capítulo primeiro, espécie de
resposta à demanda surgida no Seminário de Santa Fé, em que o “estar lá”
(campo) e o “estar aqui” (textualidade) estão no centro do debate.
Geertz, a
priori, traz uma preocupação no tocante à literariedade presente no texto
etnográfico, em que este poderia ter seu estatuto de verdade prejudicado, visto
que tal texto, para Geertz, deve desvelar o campo de forma que o leitor também
sinta como se “estivesse lá”, sendo, para este último, o texto uma verdade, ou
seja, a escrita deveria ser, também, uma forma de desvelamento da presença do
pesquisador no campo em que o leitor se sente convencido que iria encontrar as
mesmas coisas se de fato “estivesse lá”. Entretanto, e para além, uma questão
latente está no subtítulo do livro: o antropólogo como autor. Geertz trata das
duas faces da mesma moeda, citando estudiosos da Antropologia como Benedict,
Sapir, Malinowski e Lévi-Strauss, reconhecendo nestes um estilo literário
peculiar que enriquece o texto etnográfico, porém enxergando no aspecto,
propositalmente, literário um problema, visto que “Os bons textos de
antropologia são simples e despretensiosos. Não convidam a uma minuciosa
leitura literocrítica, nem tampouco a recompensam” (2009: 12).
Ao longo do capítulo, Geertz aborda a questão da autoria no texto
etnográfico e fecha a seção com quatro exemplos: Lévi-Strauss, E.E.
Evans-Pritchard, B. Malinowski e Ruth Benedict. Este fazer de Geertz nada mais
é do que trazer uma questão muito cara aos ditos pós-modernos: objetividade x
subjetividade no texto etnográfico. Porém, nota-se que, pelos exemplos citados,
uma certa dose de literariedade é inevitável para o contexto etnográfico,
devendo o etnógrafo se preocupar com certos limites em sua elaboração textual.
Néstor García Canclini (2009: 143) também aborda
o saber-fazer da Antropologia, dialogando com Geertz e Clifford, trazendo as
inquietações e conflitos do contexto pós-moderno, mas também refletindo acerca da
prática usual do antropólogo, compreendendo que para além dos descentramentos e
estranhamentos, o fazer antropológico tinha então como marca indelével o
tensionamento entre o que seria próprio e o que seria diferente, principalmente
no que tange ao “estar lá” e ao “estar aqui”.
Marina Lile Corde (2013: 22) problematiza a questão objetividade x
subjetividade, seguindo a linha de raciocínio enfatizada por Clifford Geertz
(2009) em seu Obras e Vidas, e busca
em seu texto trazer a importância de uma certa literariedade para a
textualização dos “trabalhos de campo” etnográficos, desvelando que a
objetividade total é um risco, visto que afasta o leitor de uma compreensão
mais ampla da realidade etnográfica. O recorrer a um estilo literário em
Antropologia faz emergir um pesquisador que constrói sua pesquisa e aproxima o
leitor não de uma verdade absoluta, mas de verdades relativizadas expostas a
partir de um texto que traz como marca uma objetividade subjetiva.
A literariedade encrustada na escrita antropológica está presente,
inclusive, no grande paradigma – já citado em outro momento - existente para a
pesquisa de campo etnográfica: os
Argonautas do Pacífico Ocidental, de Bronislaw Malinowski. No trecho a
seguir (1984: 23), faço destaque para que se perceba a interação do texto com o
leitor. Guardadas as devidas proporções, como Machado de Assis fizera por meio
de seu narrador Brás Cubas em suas
Memórias Póstumas, Malinowski chamara, metaforicamente, este leitor para o
campo etnográfico, para o “estar lá” nos
Argonautas.
Imagine-se o
leitor sozinho, rodeado apenas de seu equipamento, numa praia tropical próxima
a uma aldeia nativa, vendo a lancha ou o barco que o trouxe afastar-se no mar
até desaparecer de vista. Tendo encontrado um lugar para morar no alojamento de
algum homem branco – negociante ou missionário – você nada tem para fazer a não
ser iniciar imediatamente seu trabalho etnográfico. Suponhamos, além disso, que
você seja apenas um principiante, sem nenhuma experiência, sem roteiro e sem
ninguém que o possa auxiliar – pois o homem branco está temporariamente
ausente, ou então, não dispõe a perder tempo com você. Isso descreve exatamente
minha iniciação na pesquisa de campo, no litoral sul da Nova Guiné.
O discurso apelativo na linguagem de Malinowski intenta fazer com que o
leitor se sinta, ao ler o texto, como se “estivesse lá”, no campo, vivenciando,
a priori, as agruras e dissabores da
pesquisa etnográfica, em um jogo no qual os regimes de verdade oscilam entre o
real e o ficcional. Interessante perceber que esta literariedade, em um
primeiro momento, parece estar em oposição à objetividade necessária ao longo
da pesquisa de campo. Daí a problematização dos ditos pós-modernos - acrescento
Clifford Geertz e seu livro-resposta - visto que enquanto o “estar lá”, campo,
é extremamente objetivo, a sistematização escrita da vivência, o “estar aqui”,
é carregada de subjetividade. Porém, neste sentido, o aspecto subjetivo ao
invés de macular o texto objetivo da ciência, tem como função torná-lo o mais
verdadeiro possível, ou, segundo o próprio Geertz (2009: 29), de convencer aos
leitores de que estes, de fato, estiveram no campo, vendo, sentindo e até
concluindo o que os etnógrafos concluíram. Nesse enredo,
o olhar geertziano juntamente com minha observação baseada em outras leituras,
corrobora intensamente para se desvelar o objetivo de Malinowski em sua
invocação do leitor no início dos Argonautas:
valer-se da subjetividade para se alcançar a objetividade.
No
que tange à questão das verdades textualizadas, o filósofo francês Michel
Foucault, de As palavras e as coisas (2002:
47), traz uma contribuição interessante a respeito de como a linguagem se
apresenta na escrita destas coisas, especificamente no século XVI, contexto no
qual, ainda com as grandes navegações, as representações criadas acerca do Outro
buscam adquirir novos contornos de verdade. Foucault (idem: 50) também reforça a questão da linguagem no que tange a sua
enunciação de verdade, algo muito caro aos antropólogos no que diz respeito à
textualização de suas etnografias desde os tempos em que a Antropologia buscava
sua afirmação, asseverando que
Mas, se a
linguagem não mais se assemelha imediatamente às coisas que ela nomeia, não
está por isso separada do mundo; continua, sob uma outra forma, a ser o lugar
das revelações e a fazer parte do espaço onde a verdade, ao mesmo tempo, se
manifesta e se enuncia. Certamente que não é mais a natureza na sua
visibilidade de origem, mas também não é um instrumento misterioso, cujos
poderes somente alguns privilegiados conheceriam. É antes a figura de um mundo
em via de se redimir, colocando-se, enfim, à escuta da verdadeira palavra.
Já
o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss (1975: 72-73), que tem Jakobson como
um de seus grandes mentores, em seu texto Linguagem
e Sociedade, observa a linguagem enquanto um fenômeno social, visto que a
língua vive e se desenvolve de maneira coletiva. E, sob um viés antropológico,
desvela tal fenômeno como constituinte de um objeto que não depende de seu
observador, já que este não possui a capacidade de interferir sobre a linguagem
do observado.
Novamente,
Michel Foucault, agora em conferência intitulada Literatura e Linguagem (In
Machado, 2005: 139-174), elucida a questão “o que é literatura?” enfatizando,
para tanto, o tripé linguagem-obra-literatura.
Foucault finda por desvelar as descontinuidades existentes para a conformação
de uma obra dita literária e, para asseverar sua perspectiva, observa algumas
destas obras e seus respectivos autores – Sade, Chateaubriand, Proust,
Cervantes, Diderot, Joyce etc. – refletindo, dessa forma, acerca da linguagem e
de sua relação com a Literatura, considerando esta segunda uma forma transgressora
da primeira. Em suma: Literatura e linguagem pervertem-se.
Como
afirmei anteriormente, a preocupação dos antropólogos com a textualização de
suas pesquisas não é uma problemática das mais recentes. Apesar de a década de
1980 ser considerada o grande marco para uma virada epistemológica no campo da
Antropologia (não apenas dela), tendo o Seminário de Santa Fé e a coletânea Writing Culture, organizada por James
Clifford e George Marcus, como paradigmas. No que tange à problematização da
escrita, textos anteriores já demonstram tal preocupação, bem como uma certa
imbricação existente entre textos literários e textos antropológicos.
Marcel
Mauss em seu texto Ofício de Etnógrafo, Método Sociológico, ainda no início do século XX, mais precisamente
no ano de 1902, faz o seguinte questionamento: “Como
procuraremos explicar os fatos?” e reflete (1979: 57):
Compreendeis,
pressentis, de que lado dirigiremos nossos esforços. Se é verdade que se deve,
antes de tudo, observar os fatos religiosos como fenômenos sócias, constitui
ainda maior verdade que, como tais, é que devem ser analisados. Se é verdade
que a crítica etnográfica nos terá permitido alcançar praticamente os fatos sociais
reais, é a outros fatos reais que precisamos vinculá-los. É aos fenômenos
sociais objetivamente constatados que vincularemos os fenômenos religiosos
objetivamente constatados. Obteremos assim sistemas coerentes dos fatos, que
poderemos exprimir em hipóteses, provisórios é verdade, mas em todo caso
racionais e objetivos.
A
preocupação de Mauss em se transmitir uma verdade, mesmo que efêmera, acerca de
suas observações, é corrente ao longo da consolidação de um saber-fazer
antropológico, desde a sua possível caracterização enquanto ciência em fins do
século XIX, passando pelo seu desenvolvimento ao longo do século XX, até o
momento em que se convencionou denominar de pós-modernismo, na década de 1980.
Ao longo da pesquisa fiz um importante achado
bibliográfico para essa pesquisa: encontrei disponível na internet uma
coletânea polonesa de textos em que o foco é a junção entre Antropologia e Literatura.
Tal coletânea está escrita em língua inglesa, mas fora traduzida do polonês por
poloneses que dominam a língua bretã, não o inverso. Considero-o material
significativo, pois estamos, muitos de nós pesquisadores, habituados – e até
domesticados - às escritas e, por conseguinte, às visões de mundo provenientes
do mundo norte-americano e euro-ocidental. Portanto, o olhar do leste europeu
acaba sendo um diferencial em meio ao domínio teórico ocidental.
Dessa
maneira, e já trazendo as leituras provenientes da coletânea supracitada, cito
o pesquisador Grzegorz Grochowski (2012: 08-09), que por um viés partindo do
olhar literário, em texto intitulado Anthropology
– Culture – Literature, ressalta o interesse sobre a ciência antropológica
e afirma que um incremento pelo interesse em Antropologia apareceu conectado
com a busca de uma nova forma de investigação literária que pudesse constituir
uma alternativa desafiadora para os legados do cientificismo e do esteticismo, entretanto,
ainda sem sucumbir às ambivalências e ao ceticismo radical dos
pós-estruturalistas. Nesse sentido, para o autor, é dentro de um quadro amplo e
atual que se deveria colocar toda uma gama de posições que exibem os diversos
determinantes da Literatura, exigindo atenção em se concentrar em suas conexões
culturais e maneiras de causar impacto no espaço social.
A
pesquisadora antropóloga Fernanda Arêas Peixoto possui um texto intitulado A viagem como vocação: antropologia e
literatura na obra de Michel Leiris, o qual está na apresentação do livro A África fantasma, escrito pelo, segundo
ela, “etnógrafo e poeta surrealista” (2007: 19) Michel Leiris, durante viagem
ao referido continente no início da década de 1930. Em seu texto, a autora faz
reflexões interessantes no que tange à aparente tensão existente entre um
escritor e um etnógrafo que habitam o mesmo corpo. Entretanto, no decorrer da
escrita, a autora descortina o caráter literário impresso, propositalmente, por
Leiris em sua etnografia.
A
obra de Leiris se torna, por esse viés, um exemplar modelo de consciência que o
autor possuía acerca da hibridação latente em sua escrita. Uma escrita
etnográfica e, ao mesmo tempo, literária, como Peixoto (idem: 30) ressalta desvelando que
(...) esta obra
explicita a dupla face de um projeto intelectual e pessoal – a literatura e a
antropologia – e a tentativa de conjugá-las, a despeito das dificuldades
implicadas na tarefa. Talvez seja este, de fato, um dos poucos livros de Leiris
a lograr uma articulação das duas dimensões: “Aí, não se verifica nenhum corte
entre meu trabalho de etnógrafo e minha atividade de escritor”.
A
partir dessa fusão observada em Leiris, percebo o antropólogo-etnógrafo também
enquanto um esteta da palavra, pois as marcas de pessoalidade e de
subjetividade estão intrinsecamente ligadas a um saber-fazer antropológico.
Nessa incessante busca pelo desvelamento do Outro, o pesquisador finda por
encontrar a si mesmo por meio de suas próprias memórias.
Sob
esse viés, indubitavelmente que a figura do antropólogo norte-americano
Clifford Geertz tem uma importância ímpar para esta aproximação e posterior
reconhecimento da importância da relação entre Antropologia e Literatura. A chamada
Antropologia Interpretativa abriu, mais intensamente, as veredas para que a
subjetividade fosse reconhecida e problematizada no texto antropológico, tendo
como matriz provocadora o livro A
interpretação das culturas (1973). Nesse sentido, trago mais uma vez
Grochowski (2012: 09), em seu texto já elucidado, e observo o olhar do mesmo
sobre este caráter interpretativo da Antropologia. O autor afirma que a orientação
interpretativa corresponde claramente a um interesse no caráter específico de
fenômenos individuais, a sensibilidade pelo gosto local e histórico, e também
uma tendência para favorecer o estudo de caso junto com uma indiferença para inferir
a criação de modelos generalizantes ou à procura de fatos invariáveis. Entretanto,
para o autor, o desejo de agarrar a complexidade da experiência humana traz
consigo um certo grau de sincretismo, e ainda ecletismo na maioria dos
trabalhos, que, por vezes, emprestam categorias da sociologia, etnografia,
historiografia, teoria da comunicação, semiótica, a ciência cognitiva, ou a
análise do discurso, tornando seu perfil um pouco similar a uma espécie de “poética
de diferenças culturais”.
Essa
poética das diferenças culturais
destacada por mim em Grochowski faz inevitavelmente estabelecer relações com os
escritos do martinicano Édouard Glissant (2005) em sua Introdução a uma Poética da
Diversidade, em que o autor, por meio de uma escrita envolvente que funde
ficção e teoria numa teia caótica (caos-mundo)
de imbricações antropológicas, históricas e literárias, questiona os cânones
ocidentalmente construídos e ressalta a potencialidade das diferenças
culturais, as quais resultam em uma crioulização
de saberes e fazeres, destacando seu locus
periférico de fala: o Caribe. Glissant afirma que (2005: 17)
O que acontece
no Caribe durante três séculos é, literalmente, o seguinte: um encontro de
elementos culturais vindos de horizontes absolutamente diversos e que realmente
se crioulizam, realmente se imbricam e se confundem um no outro para dar
nascimento a algo absolutamente imprevisível, absolutamente novo – a realidade
crioula. [...] a crioulização que se dá na Neo-América e que se estende pelas
outras Américas é a mesma que vem acontecendo no mundo inteiro.
Nessa
linha de fusões, mesclas, misturas, hibridações, crioulizações, tendo a escrita
como paradigma, a pesquisadora polonesa Anna Lebkowska (2012: 32), a qual trabalha na linha
das intersecções entre a Antropologia e a Literatura, em texto intitulado Between the Anthropology of Literature and
Literary Anthropology, ressalta a importância do já citado Geertz para este
contexto de valorização tanto do caráter interpretativo quanto das
subjetividades no texto antropológico, além de buscar descortinar o modo como a
cultura é observada.
Nesse
sentido, o que torna o texto antropológico uma verdade que o diferencie de uma
ficção literária? Ou será que, parafraseando Marilyn Strathern (2013), um certo
ar de ficção é necessário à Antropologia para que o leitor seja persuadido pela
escrita do antropólogo, para que assim este alcance seu objetivo principal:
fazer com o aquele leitor sinta o campo etnográfico por meio da escrita?
Nessa esteira, a pesquisadora portuguesa Ana Maria Mão de Ferro Martinho (2013: 05), inicia uma reflexão acerca do papel da ficção no texto antropológico construído a partir do campo etnográfico e reflete acerca do caráter marginal inerente à etnografia, principalmente, por se tratar de um saber-fazer epistemologicamente recente, porém que rapidamente tornou-se centralidade. Para a autora, isto pode ter como resultado tanto a ampliação e recepção do trabalho do etnógrafo quanto, em contrapartida, a resistência em relação à autoridade etnográfica reivindicada pelo pesquisador em seu campo, destacando-se então o aspecto ficcional da escrita. Ana Maria arremata ratificando a ideia de que (ibidem) “A Etnografia estaria, assim, bem posicionada para ser ao mesmo tempo um ‘fornecedor’ e um ‘receptor’ ativo da Antropologia e da Literatura”.
Dessa
maneira, penso – auxiliado por Mariza Peirano (2006: 07) a qual afirma que “a
teoria é par inseparável da etnografia (...)” - que apesar de todo cabedal
teórico-metodológico do qual se apropria o antropólogo, o fazer etnográfico é
extremamente empírico, fato este que contribui para que o texto etnográfico
tenha a possibilidade de se situar no entre-lugar da Antropologia e da Literatura
reforçando assim o papel da subjetividade e da ficção na escrita antropológica.