quinta-feira, 1 de outubro de 2020

 

A Antropologia e seus deslizamentos: uma ciência poética ou a poética da ciência?


“O confronto da antropologia com a literatura é imprescindível”.

Inicio este breve ensaio com a assertiva de Laplantine (2011: 174) e já vou, dessa maneira, desvelando o porvir de minha escrita liminarmente situada entre a Antropologia e a Literatura.

Uma, em princípio, ruptura entre as ciências ditas humanas e uma escrita literária ocorreu em fins do século XVIII e ao longo do XIX impulsionada, primordialmente, pelo Iluminismo e pela grande virada científica daquele período, a qual primava, em primeiro plano, pelo rigor teórico-metodológico, buscando não abrir espaço para quaisquer possibilidades de abalo em suas verdades.

A Poietké fora problematizada ainda entre os gregos antigos com preocupações semelhantes às da contemporaneidade. Para ilustrar tal fato, permito-me aqui fazer uma oportuna analogia dessa ruptura acima citada com a expulsão dos poetas no livro X d’A República, de Platão, para o qual o caráter imitativo é parte da realidade humana, no entanto estaria longe da essência ideal do ser e, portanto, não seria algo proveitoso para a formação de pessoas virtuosas, daí tal expulsão pela função menor atribuída a estes poetas, apesar de, contraditoriamente, a própria República estar contida no mundo das ideias platônicas. O próprio Platão afirma que: “Portanto, a arte de imitar está bem longe da verdade, e se executa tudo, ao que parece, é pelo fato de atingir uma pequena porção de cada coisa, que não passa de uma aparição” (2007: 296). 

Em contrapartida, o discípulo de Platão, Aristóteles, na Poética, faz a defesa da imitação (mimese) como algo imanente à natureza humana que, para além da katharsis (prazer, purificação), contribui para engrandecer o conhecimento humano, tendo a possibilidade de ser mais importante que a história propriamente dita. O filósofo afirma (2008: 91) que                                                       

 

No que diz respeito à imitação através da narração e em verso, é necessário, como nas tragédias, construir enredos dramáticos e em volta de uma acção única e completa que tenha princípio, meio e fim, para que, tal como um ser vivo único e inteiro, produza um prazer próprio e, evidentemente, a sua estrutura não deve ser igual a das narrativas históricas, nas quais é forçoso que se faça a exposição não de uma só acção, mas de um só período de tempo, de tudo o que, nesse tempo, aconteceu a uma ou a varias pessoas, cada uma das quais se liga às outras como o acaso determinou.

 

Com essa breve analogia, busco mostrar que, de fato, a preocupação em se transmitir algo factualmente verdadeiro é corrente na história da humanidade, óbvio que com suas diferentes nuances ao longo do tempo, influenciando inclusive na conformação das ditas disciplinas científicas, interessando-me aqui a ciência antropológica

A possibilidade de percepção de uma forte subjetividade – com status de verdade - no texto antropológico tem como paradigma, segundo Strathern (2013), os Argonautas do Pacífico Ocidental, de Malinowski, devido ao estilo retórico de escrita deste autor. No entanto, Strathern vai além e percebe traços de certa literariedade nos escritos evolucionistas culturais de James Frazer, recuperando seu texto chamado Folk-lore in the Old Testament, no qual ela observa que Frazer se vale de um contexto de vida influenciado pela literatura, pela bíblia e pela própria etnografia para construir uma narrativa una. Desta maneira, a autora busca desconstruir o desnível abissal existente entre uma Antropologia pré-malinowskiana e uma pós-malinowskiana, justificando tal intenção por meio da quebra de uma compreensível dureza, em princípio, de um texto científico com base evolucionista.

 Acerca da escrita propriamente etnográfica, Strathern (2013: 44-45) afirma que

 

Preparar uma descrição requer estratégias literárias específicas, a construção de uma ficção persuasiva: uma monografia precisa estar arranjada de tal maneira que possa expressar novas composições de ideias. Essa se torna uma questão sobre sua própria composição interna, a organização da análise, a sequência pela qual o leitor é introduzido a conceitos, o modo como as categorias são justapostas ou os dualismos são invertidos. Dessa forma, quando o escritor escolhe (digamos) estilo “científico” ou “literário”, ele assinala o tipo de ficção que faz; não se pode fazer a escolha de evitar completamente a ficção.

 

Isto é, para a autora de forma geral, o modo como se é composto o texto etnográfico, inevitavelmente, recorre a elementos que seriam, a priori, inerentes a ficções literárias. Independentemente de se optar ou não por um estilo propriamente rígido (texto científico) ou mais literário. Ou seja, de qualquer maneira o aspecto ficcional estará presente em ambos.

Nessa linha, François Laplantine (2011: 181) em seu Aprender Antropologia observa traços de poeticidade em narrativas de viagens, bem como marcas etnográficas em textos literários (romances) e sintetiza que os pontos de vista de cada um, tanto o do romancista quanto o do etnólogo, esforçam-se por serem totais, mas não absolutos, isto é, intentam em apreender a realidade de forma relativa. Nesse sentido, o autor estabelece a conexão entre a Antropologia e a Literatura alicerçado em escritos de viagem. Tais escritos corroboram para as discussões em torno das relações entre cultura, identidade e sociedade, pois é no encontro fronteiriço com o Outro que emergem as diferenças, os hibridismos e relações de poder em um dado momento histórico. Neste sentido, Laplantine afirma que o escritor, ao relatar estes deslocamentos, não faz um trabalho literário apenas, mas afirma, sob um enfoque contemporâneo, que há também um labor etnográfico em torno dessas movimentações em seus escritos. Chateaubriand, Melville, Conrad, Cendrars, Gide, Baudelaire, Artaud, entre outros autores figuram na vasta lista desses escritores de viagem.

Miguel Vale de Almeida, ao destacar a relação entre Antropologia e Literatura, defende a necessidade de se colocar “o dedo na ferida da produção” (2008: 02). Para o autor, tal ferida é revelada quando se confronta o olhar literário ao antropológico, no que tange ao aspecto sociocultural, isto é, quem daria conta de uma observação mais detalhada da realidade: um romance ou uma monografia etnográfica?

Nessa linha de raciocínio, verificam-se, atualmente, indícios de uma maior aceitabilidade pelo antropólogo do texto literário como ferramenta auxiliar nas investigações socioculturais. Como arremata Rita Chaves (apud Almeida 2008: 205) afirmando que

 

(...) a Antropologia integra-se à Literatura, formando uma espécie de cadeia multidisciplinar mais apta a melhor flagrar alguns dos movimentos da dinâmica cultural encenada nesse cenário particular que segue semeando perplexidades e impondo a necessidade de novas formas de abordagem.

 

Marcel Mauss (1902) também reflete acerca da intrínseca relação da Antropologia com a Literatura ao versar em escritos do missionário inglês Henri Callaway. O antropólogo termina por comparar o método do religioso na composição de seu livro sobre a religião dos Amazulus com o utilizado pelos irmãos Grimm na coleta de alguns de seus contos.

Nesse sentido, tenho ciência de que a Literatura, em particular o romance, é, em si, observação detalhada da realidade, ampliação das significações do real na ficção, daí a possibilidade de sua aproximação com a etnografia.

Roman Jakobson (1985: 17), em seu ensaio intitulado A linguagem comum dos linguistas e dos antropólogos contido no livro Linguística e Comunicação, faz interessante comentário acerca da questão da linguagem sob uma ótica transdisciplinar afirmando ser importante para o âmbito dos estudos linguísticos a contribuição advinda dos estudos antropológicos, principalmente no que diz respeito à questão cultural enquanto centralidade, concebendo assim a linguagem enquanto manifestação cotidiana da vida social de uma dada comunidade. E arremata o linguista russo acerca da função poética da linguagem na sua relação com o dia a dia (idem: 21)

 

Essa função poética, entretanto, não se confina à poesia. Há uma diferença na hierarquia: tal função pode estar subordinada e outras funções ou, ao contrário, aparecer como a função central, organizadora, da mensagem. A concepção da linguagem poética como uma forma de linguagem onde a função poética é predominante ajudar-nos-á a compreender melhor a linguagem prosaica de todos os dias, em que a hierarquia de funções é diferente, mas em que tal função poética (ou estética) tem necessariamente um lugar e desempenha um papel tangível tanto do ponto de vista sincrônico como sob o ponto de vista diacrônico.

 

Uma poética que, a meu ver, desvela, por meio da linguagem, o cotidiano, trazendo à tona suas particularidades e dialoga, neste trecho em particular, com o que escrevera James Clifford tempos depois em excerto retirado da parte introdutória de A Escrita da Cultura (Writing Culture) (2016: 60), ao abordar acerca da literariedade no texto etnográfico:

 

A “poesia” não se limita ao subjetivismo romântico ou moderno: ela pode ser histórica, precisa, objetiva. E, evidentemente, ela é tão determinada, convencional e institucionalmente, quanto a “prosa”. A etnografia é uma atividade textual híbrida: ela atravessa os gêneros e as disciplinas. Os ensaios neste volume não defendem que a etnografia seja “apenas literatura”. Mas insistem em que ela é sempre escrita.

 

Clifford esclarece, em síntese, que tanto a poesia quanto a prosa e suas poéticas não estão limitados ao aspecto literário. De maneira similar, o texto etnográfico transcende a qualquer encaixotamento disciplinar. 

Ainda na esteira de Clifford no que tange ao texto etnográfico o autor destaca a emersão de vozes por meio da alegoria enquanto parte do texto etnográfico no momento da textualização. O crítico reflete no texto Sobre a alegoria etnográfica (Idem: 155) que questões específicas, as quais possuem as informações provenientes do fazer etnográfico, não podem ser limitadas a uma descrição somente científica, e sim tornar compreensível outras formas de vida em suas subjetividades.

Nesse sentido, o autor enfatiza seis pontos referentes a um novo olhar sobre a Antropologia, baseado em uma fazer etnográfico assentado na observação participante. Primeiro, a vivência com o objeto de estudo; segundo, o uso da língua nativa pelo pesquisador; terceiro, uma observação participante que enfatiza o aspecto visual; quarto, o conhecimento da estrutura social de uma dada comunidade; quinto, em termos culturais, as partes concebem o todo cultural; sexto, o presente etnográfico, o tempo de pesquisa para o conhecimento de uma cultura. Para Clifford, tais nortes tinham a função de caracterizar uma etnografia eficiente, com esteio em uma observação participante, na junção de experiência e interpretação.

Essa junção entre experiência e interpretação, no que diz respeito à autoridade etnográfica, confere ao etnógrafo, segundo Clifford, o “eu estava lá”. O pensamento de James Clifford dialoga intensamente com o de Geertz (2009), no que tange ao “estar lá” que, para o segundo, é comprovado por meio da escrita e revela o afetar e o ser afetado do antropólogo enquanto autor de suas etnografias, preocupação acentuada, primordialmente, em função da publicação, em 1967, dos diários de campo de Malinowski acerca de sua experiência nas ilhas Trobriand. Os diários malinowskianos obtiveram enorme repercussão pelo descortinamento das agruras do pesquisador em campo, verdadeira materialização do paradoxo existente entre o “estar lá” e o “estar aqui”. Segue um pequeno trecho do referido texto (1997: 50):

 

Domingo, 27.09. Ontem fez duas semanas que estou aqui. Não posso dizer que venha me sentindo bem fisicamente. No sábado passado fiquei extenuado na excursão com Ahuia, e não consegui me recobrar ainda. Insônia, (não muito acentuada), coração sobrecarregado e nervosismo (principalmente) parecem ser os sintomas, ate agora.

 

A alusão que se faz a Geertz está presentificada em seu livro Obras e Vidas: o antropólogo como autor. Nesta obra, Geertz traz como eixo de discussão a etnografia enquanto gênero, no entanto, destaco aqui o capítulo primeiro, espécie de resposta à demanda surgida no Seminário de Santa Fé, em que o “estar lá” (campo) e o “estar aqui” (textualidade) estão no centro do debate.

Geertz, a priori, traz uma preocupação no tocante à literariedade presente no texto etnográfico, em que este poderia ter seu estatuto de verdade prejudicado, visto que tal texto, para Geertz, deve desvelar o campo de forma que o leitor também sinta como se “estivesse lá”, sendo, para este último, o texto uma verdade, ou seja, a escrita deveria ser, também, uma forma de desvelamento da presença do pesquisador no campo em que o leitor se sente convencido que iria encontrar as mesmas coisas se de fato “estivesse lá”. Entretanto, e para além, uma questão latente está no subtítulo do livro: o antropólogo como autor. Geertz trata das duas faces da mesma moeda, citando estudiosos da Antropologia como Benedict, Sapir, Malinowski e Lévi-Strauss, reconhecendo nestes um estilo literário peculiar que enriquece o texto etnográfico, porém enxergando no aspecto, propositalmente, literário um problema, visto que “Os bons textos de antropologia são simples e despretensiosos. Não convidam a uma minuciosa leitura literocrítica, nem tampouco a recompensam” (2009: 12).

Ao longo do capítulo, Geertz aborda a questão da autoria no texto etnográfico e fecha a seção com quatro exemplos: Lévi-Strauss, E.E. Evans-Pritchard, B. Malinowski e Ruth Benedict. Este fazer de Geertz nada mais é do que trazer uma questão muito cara aos ditos pós-modernos: objetividade x subjetividade no texto etnográfico. Porém, nota-se que, pelos exemplos citados, uma certa dose de literariedade é inevitável para o contexto etnográfico, devendo o etnógrafo se preocupar com certos limites em sua elaboração textual.

Néstor García Canclini (2009: 143) também aborda o saber-fazer da Antropologia, dialogando com Geertz e Clifford, trazendo as inquietações e conflitos do contexto pós-moderno, mas também refletindo acerca da prática usual do antropólogo, compreendendo que para além dos descentramentos e estranhamentos, o fazer antropológico tinha então como marca indelével o tensionamento entre o que seria próprio e o que seria diferente, principalmente no que tange ao “estar lá” e ao “estar aqui”.

Marina Lile Corde (2013: 22) problematiza a questão objetividade x subjetividade, seguindo a linha de raciocínio enfatizada por Clifford Geertz (2009) em seu Obras e Vidas, e busca em seu texto trazer a importância de uma certa literariedade para a textualização dos “trabalhos de campo” etnográficos, desvelando que a objetividade total é um risco, visto que afasta o leitor de uma compreensão mais ampla da realidade etnográfica. O recorrer a um estilo literário em Antropologia faz emergir um pesquisador que constrói sua pesquisa e aproxima o leitor não de uma verdade absoluta, mas de verdades relativizadas expostas a partir de um texto que traz como marca uma objetividade subjetiva.

A literariedade encrustada na escrita antropológica está presente, inclusive, no grande paradigma – já citado em outro momento - existente para a pesquisa de campo etnográfica: os Argonautas do Pacífico Ocidental, de Bronislaw Malinowski. No trecho a seguir (1984: 23), faço destaque para que se perceba a interação do texto com o leitor. Guardadas as devidas proporções, como Machado de Assis fizera por meio de seu narrador Brás Cubas em suas Memórias Póstumas, Malinowski chamara, metaforicamente, este leitor para o campo etnográfico, para o “estar lá” nos Argonautas.

 

Imagine-se o leitor sozinho, rodeado apenas de seu equipamento, numa praia tropical próxima a uma aldeia nativa, vendo a lancha ou o barco que o trouxe afastar-se no mar até desaparecer de vista. Tendo encontrado um lugar para morar no alojamento de algum homem branco – negociante ou missionário – você nada tem para fazer a não ser iniciar imediatamente seu trabalho etnográfico. Suponhamos, além disso, que você seja apenas um principiante, sem nenhuma experiência, sem roteiro e sem ninguém que o possa auxiliar – pois o homem branco está temporariamente ausente, ou então, não dispõe a perder tempo com você. Isso descreve exatamente minha iniciação na pesquisa de campo, no litoral sul da Nova Guiné.

 

O discurso apelativo na linguagem de Malinowski intenta fazer com que o leitor se sinta, ao ler o texto, como se “estivesse lá”, no campo, vivenciando, a priori, as agruras e dissabores da pesquisa etnográfica, em um jogo no qual os regimes de verdade oscilam entre o real e o ficcional. Interessante perceber que esta literariedade, em um primeiro momento, parece estar em oposição à objetividade necessária ao longo da pesquisa de campo. Daí a problematização dos ditos pós-modernos - acrescento Clifford Geertz e seu livro-resposta - visto que enquanto o “estar lá”, campo, é extremamente objetivo, a sistematização escrita da vivência, o “estar aqui”, é carregada de subjetividade. Porém, neste sentido, o aspecto subjetivo ao invés de macular o texto objetivo da ciência, tem como função torná-lo o mais verdadeiro possível, ou, segundo o próprio Geertz (2009: 29), de convencer aos leitores de que estes, de fato, estiveram no campo, vendo, sentindo e até concluindo o que os etnógrafos concluíram. Nesse enredo, o olhar geertziano juntamente com minha observação baseada em outras leituras, corrobora intensamente para se desvelar o objetivo de Malinowski em sua invocação do leitor no início dos Argonautas: valer-se da subjetividade para se alcançar a objetividade.

No que tange à questão das verdades textualizadas, o filósofo francês Michel Foucault, de As palavras e as coisas (2002: 47), traz uma contribuição interessante a respeito de como a linguagem se apresenta na escrita destas coisas, especificamente no século XVI, contexto no qual, ainda com as grandes navegações, as representações criadas acerca do Outro buscam adquirir novos contornos de verdade. Foucault (idem: 50) também reforça a questão da linguagem no que tange a sua enunciação de verdade, algo muito caro aos antropólogos no que diz respeito à textualização de suas etnografias desde os tempos em que a Antropologia buscava sua afirmação, asseverando que

 

Mas, se a linguagem não mais se assemelha imediatamente às coisas que ela nomeia, não está por isso separada do mundo; continua, sob uma outra forma, a ser o lugar das revelações e a fazer parte do espaço onde a verdade, ao mesmo tempo, se manifesta e se enuncia. Certamente que não é mais a natureza na sua visibilidade de origem, mas também não é um instrumento misterioso, cujos poderes somente alguns privilegiados conheceriam. É antes a figura de um mundo em via de se redimir, colocando-se, enfim, à escuta da verdadeira palavra.

 

Já o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss (1975: 72-73), que tem Jakobson como um de seus grandes mentores, em seu texto Linguagem e Sociedade, observa a linguagem enquanto um fenômeno social, visto que a língua vive e se desenvolve de maneira coletiva. E, sob um viés antropológico, desvela tal fenômeno como constituinte de um objeto que não depende de seu observador, já que este não possui a capacidade de interferir sobre a linguagem do observado.   

Novamente, Michel Foucault, agora em conferência intitulada Literatura e Linguagem (In Machado, 2005: 139-174), elucida a questão “o que é literatura?” enfatizando, para tanto, o tripé linguagem-obra-literatura. Foucault finda por desvelar as descontinuidades existentes para a conformação de uma obra dita literária e, para asseverar sua perspectiva, observa algumas destas obras e seus respectivos autores – Sade, Chateaubriand, Proust, Cervantes, Diderot, Joyce etc. – refletindo, dessa forma, acerca da linguagem e de sua relação com a Literatura, considerando esta segunda uma forma transgressora da primeira. Em suma: Literatura e linguagem pervertem-se.

Como afirmei anteriormente, a preocupação dos antropólogos com a textualização de suas pesquisas não é uma problemática das mais recentes. Apesar de a década de 1980 ser considerada o grande marco para uma virada epistemológica no campo da Antropologia (não apenas dela), tendo o Seminário de Santa Fé e a coletânea Writing Culture, organizada por James Clifford e George Marcus, como paradigmas. No que tange à problematização da escrita, textos anteriores já demonstram tal preocupação, bem como uma certa imbricação existente entre textos literários e textos antropológicos.

Marcel Mauss em seu texto Ofício de Etnógrafo, Método Sociológico, ainda no início do século XX, mais precisamente no ano de 1902, faz o seguinte questionamento: “Como procuraremos explicar os fatos?” e reflete (1979: 57):

 

Compreendeis, pressentis, de que lado dirigiremos nossos esforços. Se é verdade que se deve, antes de tudo, observar os fatos religiosos como fenômenos sócias, constitui ainda maior verdade que, como tais, é que devem ser analisados. Se é verdade que a crítica etnográfica nos terá permitido alcançar praticamente os fatos sociais reais, é a outros fatos reais que precisamos vinculá-los. É aos fenômenos sociais objetivamente constatados que vincularemos os fenômenos religiosos objetivamente constatados. Obteremos assim sistemas coerentes dos fatos, que poderemos exprimir em hipóteses, provisórios é verdade, mas em todo caso racionais e objetivos.

 

A preocupação de Mauss em se transmitir uma verdade, mesmo que efêmera, acerca de suas observações, é corrente ao longo da consolidação de um saber-fazer antropológico, desde a sua possível caracterização enquanto ciência em fins do século XIX, passando pelo seu desenvolvimento ao longo do século XX, até o momento em que se convencionou denominar de pós-modernismo, na década de 1980.

 Ao longo da pesquisa fiz um importante achado bibliográfico para essa pesquisa: encontrei disponível na internet uma coletânea polonesa de textos em que o foco é a junção entre Antropologia e Literatura. Tal coletânea está escrita em língua inglesa, mas fora traduzida do polonês por poloneses que dominam a língua bretã, não o inverso. Considero-o material significativo, pois estamos, muitos de nós pesquisadores, habituados – e até domesticados - às escritas e, por conseguinte, às visões de mundo provenientes do mundo norte-americano e euro-ocidental. Portanto, o olhar do leste europeu acaba sendo um diferencial em meio ao domínio teórico ocidental.

Dessa maneira, e já trazendo as leituras provenientes da coletânea supracitada, cito o pesquisador Grzegorz Grochowski (2012: 08-09), que por um viés partindo do olhar literário, em texto intitulado Anthropology – Culture – Literature, ressalta o interesse sobre a ciência antropológica e afirma que um incremento pelo interesse em Antropologia apareceu conectado com a busca de uma nova forma de investigação literária que pudesse constituir uma alternativa desafiadora para os legados do cientificismo e do esteticismo, entretanto, ainda sem sucumbir às ambivalências e ao ceticismo radical dos pós-estruturalistas. Nesse sentido, para o autor, é dentro de um quadro amplo e atual que se deveria colocar toda uma gama de posições que exibem os diversos determinantes da Literatura, exigindo atenção em se concentrar em suas conexões culturais e maneiras de causar impacto no espaço social.

A pesquisadora antropóloga Fernanda Arêas Peixoto possui um texto intitulado A viagem como vocação: antropologia e literatura na obra de Michel Leiris, o qual está na apresentação do livro A África fantasma, escrito pelo, segundo ela, “etnógrafo e poeta surrealista” (2007: 19) Michel Leiris, durante viagem ao referido continente no início da década de 1930. Em seu texto, a autora faz reflexões interessantes no que tange à aparente tensão existente entre um escritor e um etnógrafo que habitam o mesmo corpo. Entretanto, no decorrer da escrita, a autora descortina o caráter literário impresso, propositalmente, por Leiris em sua etnografia.

A obra de Leiris se torna, por esse viés, um exemplar modelo de consciência que o autor possuía acerca da hibridação latente em sua escrita. Uma escrita etnográfica e, ao mesmo tempo, literária, como Peixoto (idem: 30) ressalta desvelando que

 

(...) esta obra explicita a dupla face de um projeto intelectual e pessoal – a literatura e a antropologia – e a tentativa de conjugá-las, a despeito das dificuldades implicadas na tarefa. Talvez seja este, de fato, um dos poucos livros de Leiris a lograr uma articulação das duas dimensões: “Aí, não se verifica nenhum corte entre meu trabalho de etnógrafo e minha atividade de escritor”.

 

A partir dessa fusão observada em Leiris, percebo o antropólogo-etnógrafo também enquanto um esteta da palavra, pois as marcas de pessoalidade e de subjetividade estão intrinsecamente ligadas a um saber-fazer antropológico. Nessa incessante busca pelo desvelamento do Outro, o pesquisador finda por encontrar a si mesmo por meio de suas próprias memórias. 

Sob esse viés, indubitavelmente que a figura do antropólogo norte-americano Clifford Geertz tem uma importância ímpar para esta aproximação e posterior reconhecimento da importância da relação entre Antropologia e Literatura. A chamada Antropologia Interpretativa abriu, mais intensamente, as veredas para que a subjetividade fosse reconhecida e problematizada no texto antropológico, tendo como matriz provocadora o livro A interpretação das culturas (1973). Nesse sentido, trago mais uma vez Grochowski (2012: 09), em seu texto já elucidado, e observo o olhar do mesmo sobre este caráter interpretativo da Antropologia. O autor afirma que a orientação interpretativa corresponde claramente a um interesse no caráter específico de fenômenos individuais, a sensibilidade pelo gosto local e histórico, e também uma tendência para favorecer o estudo de caso junto com uma indiferença para inferir a criação de modelos generalizantes ou à procura de fatos invariáveis. Entretanto, para o autor, o desejo de agarrar a complexidade da experiência humana traz consigo um certo grau de sincretismo, e ainda ecletismo na maioria dos trabalhos, que, por vezes, emprestam categorias da sociologia, etnografia, historiografia, teoria da comunicação, semiótica, a ciência cognitiva, ou a análise do discurso, tornando seu perfil um pouco similar a uma espécie de “poética de diferenças culturais”.

Essa poética das diferenças culturais destacada por mim em Grochowski faz inevitavelmente estabelecer relações com os escritos do martinicano Édouard Glissant (2005) em sua Introdução a uma Poética da Diversidade, em que o autor, por meio de uma escrita envolvente que funde ficção e teoria numa teia caótica (caos-mundo) de imbricações antropológicas, históricas e literárias, questiona os cânones ocidentalmente construídos e ressalta a potencialidade das diferenças culturais, as quais resultam em uma crioulização de saberes e fazeres, destacando seu locus periférico de fala: o Caribe. Glissant afirma que (2005: 17)

 

O que acontece no Caribe durante três séculos é, literalmente, o seguinte: um encontro de elementos culturais vindos de horizontes absolutamente diversos e que realmente se crioulizam, realmente se imbricam e se confundem um no outro para dar nascimento a algo absolutamente imprevisível, absolutamente novo – a realidade crioula. [...] a crioulização que se dá na Neo-América e que se estende pelas outras Américas é a mesma que vem acontecendo no mundo inteiro.

 

Nessa linha de fusões, mesclas, misturas, hibridações, crioulizações, tendo a escrita como paradigma, a pesquisadora polonesa Anna Lebkowska (2012: 32), a qual trabalha na linha das intersecções entre a Antropologia e a Literatura, em texto intitulado Between the Anthropology of Literature and Literary Anthropology, ressalta a importância do já citado Geertz para este contexto de valorização tanto do caráter interpretativo quanto das subjetividades no texto antropológico, além de buscar descortinar o modo como a cultura é observada.

Nesse sentido, o que torna o texto antropológico uma verdade que o diferencie de uma ficção literária? Ou será que, parafraseando Marilyn Strathern (2013), um certo ar de ficção é necessário à Antropologia para que o leitor seja persuadido pela escrita do antropólogo, para que assim este alcance seu objetivo principal: fazer com o aquele leitor sinta o campo etnográfico por meio da escrita?

Nessa esteira, a pesquisadora portuguesa Ana Maria Mão de Ferro Martinho (2013: 05), inicia uma reflexão acerca do papel da ficção no texto antropológico construído a partir do campo etnográfico e reflete acerca do caráter marginal inerente à etnografia, principalmente, por se tratar de um saber-fazer epistemologicamente recente, porém que rapidamente tornou-se centralidade. Para a autora, isto pode ter como resultado tanto a ampliação e recepção do trabalho do etnógrafo quanto, em contrapartida, a resistência em relação à autoridade etnográfica reivindicada pelo pesquisador em seu campo, destacando-se então o aspecto ficcional da escrita. Ana Maria arremata ratificando a ideia de que (ibidem) “A Etnografia estaria, assim, bem posicionada para ser ao mesmo tempo um ‘fornecedor’ e um ‘receptor’ ativo da Antropologia e da Literatura”.             

Dessa maneira, penso – auxiliado por Mariza Peirano (2006: 07) a qual afirma que “a teoria é par inseparável da etnografia (...)” - que apesar de todo cabedal teórico-metodológico do qual se apropria o antropólogo, o fazer etnográfico é extremamente empírico, fato este que contribui para que o texto etnográfico tenha a possibilidade de se situar no entre-lugar da Antropologia e da Literatura reforçando assim o papel da subjetividade e da ficção na escrita antropológica.

 

quinta-feira, 6 de junho de 2019

Viagem

A cena se repete
Parto com o coração miúdo.
O céu é vasto e escuro...
Vidros me separam das estrelas,
Mas não há impedimento em observá-las.

Entre canções, a memória te traz.
Os olhos umedecem,
Surge um sorriso tímido...
("I wish you were here").

Clarões surgem, pessoas seguem, 
Há obstáculos,
A vida segue...

Minhas pálpebras pesam, 
A música aos poucos silencia. 
A pausa se faz necessária. 

Ouço versos ao longe:
"What the hell am I doing here?
I don't belong here!"
Pensamentos revoltos...
Porém, distanciar-se é preciso.

O sentimento é (sur)real,
A saudade doída, 
Mnemosine um refúgio, 
E tu, minha musa, um grande amor...
Daqueles que fazem a vida e seus sacrifícios 
Valerem a pena! 
Há Mar

Haverá amor
Enquanto houver mar...

Sempre...
Sinuosidades

Presente...
          Viajo pela silhueta do teu corpo,
Me perco nas dobras do tempo
          Teso com tuas carícias. 
À distância...
          Penso nas curvas do teu sorriso,
Encontro calmaria nas memórias
          Saudoso dos teus afagos.

terça-feira, 26 de dezembro de 2017

"Saldade"...

A dor da tua ausência
tem o gosto salgado das lágrimas
que correm pela minha face 
e tocam meus lábios sedentos
de ti...

quarta-feira, 5 de julho de 2017

Sobre viagem e amor...

When in Rome...

Sigo a vagar por ROMA,
dou-me a conhecer outras paragens.
Há perdas na ânsia de encontrar a mim.
Os não-lugares  muito me trazem,
as não-línguas muito me dizem,
mas nada se compara a ti, minha menina.
És o lugar no qual me espelho,
és a língua que eu melhor compreendo.
Tenho em ti, meu bem,
o anagrama perfeito de minha vaguidão...

sábado, 24 de junho de 2017

...



2 em 1

O que tem em teu corpo que me inebria até a alma?


Sou dominado pelo teu cheiro.
Um cativo à espera do açoite. 

Entrego-me a ti de todo.
Fúria e ternura entre mãos, pernas, dedos e línguas. 

O teu toque e o calor da tua boca me enlouquecem.
Saio de mim e entro em ti!

O teu sussurro ao pé do ouvido me desmonta.
Tu te enroscas comigo e me delicias. 

Não sei o que é.
Apenas sinto uma profusão de coisas cá dentro.

Talvez, apesar de clichê,
Seja o amor materializado no instante em que somos um só.