quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Neste 15 de novembro, dia da dita Proclamação da República, é interessante que reflitamos acerca do que nosso país se tornou ao longo de mais de um  século. Saímos das mãos do senhor Império, para cair nas mãos da senhora República, tão vil e corrupta quanto...
Nós, amantes da literatura, não podemos esquecer um dos importantes papéis desempenhados pela arte: provocar! Então, vai aí um texto bem provocativo que faz alusão a este período.

TRECHO DO TEXTO A SERENÍSSIMA REPÚBLICA, DE MACHADO DE ASSIS.


(...)A proposta foi aceita. Sereníssima República pareceu-lhes um título magnífico, roçagante, expansivo, próprio a engrandecer a obra popular.
Não direi, senhores, que a obra chegou à perfeição, nem que lá chegue tão cedo. Os meus pupilos não são os solários de Campanela ou os utopistas de Morus; formam um povo recente, que não pode trepar de um salto ao cume das nações seculares. Nem o tempo é operário que ceda a outro a lima ou o alvião; ele fará mais e melhor do que as teorias do papel, válidas no papel e mancas na prática. O que posso afirmar-vos é que, não obstante as incertezas da idade, eles caminham, dispondo de algumas virtudes, que presumo essenciais à duração de um Estado. Uma delas, como já disse, é a perseverança, uma longa paciência de Penélope, segundo vou mostrar-vos.
Com efeito, desde que compreenderam que no ato eleitoral estava a base da vida pública,trataram de o exercer com a maior atenção. O fabrico do saco foi uma obra nacional. Era um saco de cinco polegadas de altura e três de largura, tecido com os melhores fios, obra sólida e espessa. Para compô-lo foram aclamadas dez damas principais, que receberam o título de mães da república, além de outros privilégios e foros. Uma obra-prima, podeis crê-lo. O processo eleitoral é simples. As bolas recebem os nomes dos candidatos, que provarem certas condições, e são escritas por um oficial público, denominado "das inscrições". No dia da eleição, as bolas são metidas no saco e tiradas pelo oficial das extrações, até perfazer o número dos elegendos. Isto que era um simples processo inicial na antiga Veneza, serve aqui ao provimento de todos os cargos.
A eleição fez-se a princípio com muita regularidade; mas, logo depois, um dos legisladores declarou que ela fora viciada, por terem entrado no saco duas bolas com o nome do mesmo candidato. A assembléia verificou a exatidão da denúncia, e decretou que o saco, até ali de três polegadas de largura, tivesse agora duas; limitando-se a capacidade do saco, restringia-se o espaço à fraude, era o mesmo que suprimi-la. (...)


FONTE: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000239.pdf

segunda-feira, 2 de julho de 2012

Há exatamente 49 anos, deixava-se de gozar da presença física de Bento Bruno de Menezes Costa, ou simplesmente Bruno de Menezes. O poeta, prosador, crítico literário, estudioso do folclore, cooperativista, entre outras qualidades, deixou-nos no dia 02 de julho de 1963, na cidade de Manaus, aos 70 anos de idade, deixando esposa, filhos...filhos naturais e outros filhos de sua poesia, órfãos de sua arte. 

Acadêmico do Peixe Frito e um dos Vândalos do Apocalipse, Bruno foi um lutador incansável contra as injustiças sociais e isso se refletiu em sua escrita...arte com função reflexiva, arte-denúncia, arte de visionário...Arte Moderna!

Ainda há muito para se descobrir sobre Bruno de Menezes, grande intelectual de nossas letras.

Foi-se o poeta, mas a poesia estará entre nós...sempre!


Romantismo de um Poema Proletário


Não fosse a alma romântica de nossa raça, 
doentia evocação ou uma simples lembrança, 
eu não estaria dando vida a estas líricas palavras, 
para rever agora a tua imagem sucumbida. 


À maneira dos Poetas tísicos e melancólicos, 
das Marílias, que aos seus amores 
ofereciam violetas e madeixas, 
nós repetimos a velha e sempre nova comédia... 


E é por isso, que do teu antigo retrato, 
onde estás exuberante e sadia, 
sorrindo com os teus lábios de polpa sumarosa, 
(como se não dormisses à luz dos vagalumes) 
se evola para mim o mesmo sândalo de tua carne, 
que era rija e colorida como a dos frutos sazonados. 


É por isso, que a mecha dos teus cabelos, 
negros e capitosos como sabias trazê-los, 
e que deixaste como prova de tua faceirice, 
parece ainda agitar-se na tua cabeça de Lindóia, 
e se encrespa, como um punhado de treva, 
entre os meus dedos paralisados. 


Talvez seja por isso... 
Ou porque não foste a terra inteiramente conquistada, 
que os homens espreitavam gulosos e alucinados... 


Ou porque, a tua rústica mocidade, 
cheirando ao mato e ao rio, 
que te viram nua, na tua infância roceira 
fizeram de ti uma força jovem; 
e como os braços de tantas irmãs-proletárias, 
afeitos a lidar com maquinismos e teares, 
também terminaste nos necrológios sem leitores... 




Publicado no livro Lua Sonâmbula: poemas (1953). Poema integrante da série Poemas a Ismael Nery. 


In: MENEZES, Bruno de. Obras completas. Belém: Secretaria de Estado da Cultura, 1993. v.1, p.339-340. (Lendo o Pará, 14) 









domingo, 1 de julho de 2012


O texto a seguir fará parte da Revista Plagium, editada por Benoni Araújo, no relançamento do tema erotismo. Comentem!!!

O poder sobre corpo em Candunga

O romance Candunga, de Bruno de Menezes, foi publicado em 1954 e faz parte, juntamente com a novela Maria Dagmar, da rara produção em prosa do autor, um poeta em sua magnitude. Candunga trata de migração nordestina para a Zona Bragantina, nordeste do Pará, por conta da colonização ao longo da Estrada de Ferro de Bragança. Uma família de retirantes cearenses dá o tom ao longo do romance, vivenciando peripécias diversas no que diz respeito ao uso da terra e ao trabalho.
     Dentre vários, destacarei de forma breve um ponto que considero bastante relevante na obra a ser observada: o uso do corpo como manutenção de poder. Desde o princípio da obra nota-se certa inclinação à sensualidade do corpo feminino por parte do narrador, descrevendo todos os retirantes, protagonistas de Candunga, dando feições animalescas, em alguns trechos, aos homens (Gonzaga e Candunga) e ressaltando, apesar das adversidades, a beleza das mulheres (Tereza, Assunção, Ana e Josefa). Observem-se tais descrições:

Francisco Gonzaga, cearense do Canindé, bordejando pelos sessenta anos, apresenta a mesma fisionomia sofrida de todos os retirantes. Em meio ao emaranhado sujo da barba, quando fala retorce a boca vincada, com a dentadura amarela, salivando “masca” [...] Antônio Candunga, seu afilhado, pelo físico dessorado, lembra um novilho desgarrado, de ossatura à mostra, a quem abriram a porteira do curral.
Tereza Rosa [...] ainda estampa nas feições maceradas traços de beleza sertaneja [...] Ana e Josefa [...] já manifestando faceirice nos gestos e nos olhares. Dois tipos característicos de nordestinas novas e bonitas, apesar dos horrores da seca. [1]

      No que diz respeito às relações de trabalho e ao corpo na zona bragantina, no contexto do romance, a escravidão por dívida é um dos meios pelos quais os “coronéis” do lugar obtêm êxito em suas empreitadas econômicas. O favor dá o tom nesta relação de trabalho, mas se deve ressaltar que a colheita, objeto de desejo dos “coronéis”, só é feita por conta da exposição de corpos resistentes o bastante para tal labor.
No que tange ao “favor”, Roberto Schwarz observa muito bem o que a colonização provocara no Brasil:

Esquematizando-se, pode-se dizer que a colonização produziu, com base no monopólio da terra, três classes de população: o latifundiário, o escravo e o “homem livre”, na verdade dependente. Entre os primeiros dois a relação é clara, é a multidão dos terceiros que nos interessa. Nem proprietários, nem proletários, seu acesso à vida social e a seus bens depende materialmente do favor, indireto ou direto, de um grande. [2]
     
Em Candunga, os colonos dependiam dos “favores” dos coronéis, que lhes forneciam vestimentas e alimentos em troca do trabalho na colheita, valendo-se da força dos corpos para o lucro da produção. O narrador de Candunga, tal qual o discurso euclidiano n’Os Sertões, destaca, apesar do aspecto desaprumado e desafortunado, a força que possui o homem nordestino. Observe-se o trecho a seguir:

Nesses dias de faina exaustiva, Gonzaga e Candunga parece que se esquecem de sua triste condição de párias, de esfalfados matungos, arrebentando-se de trabalhos.
Volvem sempre ao escurecer, porejantes e famintos. E vendo-os abatidos pelo esforço em realizarem, só os dois, o que ocuparia muitos braços, Tereza e Assuncão se oferecem para ajudá-los. [3]  

Nesta relação, o migrante tem somente sua força de trabalho para oferecer aos “donos” das terras onde trabalham, enquanto que os comerciantes usufruem destes corpos para o seu único bem, a geração de lucro aos seus negócios. O que Foucault chama de “economia política do corpo[4]”, punição e obtenção da docilidade para que tais corpos continuem subservientes.
      Além do usufruto do corpo do homem como força de trabalho, há, também, a relação com o corpo da mulher em Candunga, também como força de trabalho. No entanto, a forma que os comerciantes utilizam o corpo feminino é diferente da dos homens, apesar do objetivo ser o mesmo, o lucro.
      Ana e Josefa, as duas filhas de Gonzaga e Tereza, tornaram-se objeto de desejo dos homens da região, moças bonitas que são, despertam a libido masculina com os seus jeitos e trejeitos. Ambas sentem falta da “vila”, lugar onde os galanteios eram comuns, diferentemente do “centro” onde se encontram. O narrador despende um longo trecho para descrever as duas meninas, bem como a sensação que suas presenças causavam:

Ana, alourado cálido, de melaço fumegante, pele branca e sedosa; Josefa, amorenado-jambo, cílios negros e longos, sombreando-lhe os olhos; quando elas passavam pelos corredores do estabelecimento, ou vinham auxiliar Rosinha a servir os fregueses, não havia homem que não detivesse o olhar para admirá-las, com uma gula intencional de desejo.
Uma com dezesseis, outra um ano mais velha, tanto na doçura cantante da voz da primeira, como na negrura úmida dos olhos da segunda, emanavam fluidos de singular atração. Com as espáduas e as ancas firmes das mulheres de remanescentes semíticos, que marcavam a sua raça, seus corpos núbeis mostravam detalhes de linhas finas e uma natural esveltez no andar aprumado[5]. 
     
Nota-se o esmero do narrador na descrição das filhas de Gonzaga. Estes trechos nos dão a mostra do poder exercido pelo corpo enquanto produção.
      A razão que motivara a saída de Ana e Josefa da casa dos pais, no “centro”, foi a não adaptação das meninas somada à vontade de João Portuga, comerciante local, de tirá-las do barracão e levá-las para a “vila”. Tal vontade do português se deu por conta dos negócios com a concubina Rosinha, prostituta requintada que viera da capital com o intuito de levar moças novas a Belém.
      Com toda a movimentação que havia na “vila”, atrativos para Ana e Josefa, o comércio de toda espécie, o falatório, a jogatina, a prostituição, eram comuns histórias que traziam consigo a marca do local. O que me chamou a atenção foi Chica Sem Medo, “que tinha um A B C amoroso dos mais corajosos[6]”. O narrador despende uma página para contar o caso da famosa prostituta, oriunda da Paraíba, que levava a vida na Zona Bragantina. Chica foi flagrada com um freguês, ambos “teriam ido pecar, no próprio leito que Chiquinha, por necessidade, não pudera honrar para sempre[7]”, pelo homem que a lançara na vida de prostituta e agora se sentia traído por Chica. No entanto, a Sem Medo não se intimida e quer continuar o ato libidinoso em frente ao lesado, não concluindo o feito por conta do medo do freguês que fugira. Enquanto isto

O amante, desmoralizado, acende um fósforo e fica de apático, diante da mulher que friamente chalaceia de seus brios.
O caso ficou muito falado. E desde essa mesma noite, e daí por diante, ela não teve mais dono. No mercado, nas feiras, nos “forrós”, passou a ser chamada “Chica Sem Medo” que os homens cobiçavam, mas respeitavam e temiam. [8]

           O destino de muitas moças oriundas do Nordeste seria, por falta de orientação e pela má índole dos mandatários, tornarem-se uma Chica Sem Medo na zona bragantina, ganhando o sustento com a venda de seu corpo. Ana e Josefa caminhavam para tal desdobramento. Isto foi um dos geradores da crise entre os espaços “vila” e “centro”. Chica Sem Medo se torna uma personagem à parte, pois não participa das imbricações do romance, apenas tem sua história mencionada, sendo uma possível referência à situação de várias moças da região, principalmente, em Candunga, para Ana e Josefa.
      Observe-se o trecho a seguir que narra o primeiro encontro entre Rosinha e João Portuga, os aliciadores em Candunga:

Certa noite de bródio alegre, numa pensão mundana, das tantas que fazem a vida noturna de Belém, a dona da casa, que sabia como Portuga aumentava o dinheiro, do prestigio que desfrutava entre os funcionários das repartições fiscalizadoras, quer da União, do Estado ou do Município, muitos deles participantes habituais de suas farras, Rosinha resolve propor-lhe um negócio. Vez em quando, ela viajava para a Estrada de Ferro de Bragança, no seu comércio de conseguir “pequenas novas” para sortir a pensão. Preferia as do interior, porque constituíam “novidades” para os fregueses já pouco entusiasmados pelas raparigas que vinham de outros Estados, muito “artistas” e profissionais. [...]
[As moças do interior] Tinham mocidade, boa aparência, e ignoravam a cotação do amor que faziam, tanto que, muitas vezes, mandavam os homens pagar à dona da casa o que seria para elas, produto de seu corpo.[9] [Grifo meu]. 
     
Neste trecho se pode ver o motivo da busca das meninas por João Portuga e enquanto ambas não embarcassem para Belém ficariam em sua casa, ajudando Rosinha no comércio e contribuindo para o aumento da freguesia: 

Ana e Josefa ficando mais apetitosas, atraindo a freguesia para os negócios de Portuga, prosperamente administrados pela jeitosa Rosinha.[10] João Portuga, murmurava-se, teria triplicado seus negócios depois da ida das retirantes para sua casa.[11] 
     
Enquanto Gonzaga e Candunga usam seus corpos na colheita, Ana e Josefa utilizam seus corpos para o deleite alheio. Em ambos os casos o lucro é garantido pela força de trabalho implementada por tais corpos, mantendo o poder dos “coronéis” da região. No que diz respeito às relações que possuem a submissão do corpo como base Foucault diz que

As relações de poder tem alcance imediato sobre ele [corpo]; elas o investem, o marcam, o dirigem, o supliciam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a cerimônias, exigem-lhe sinais. Este investimento político do corpo está ligado, segundo relações complexas e recíprocas, à sua utilização econômica; e, numa boa proporção, como forca de produção que o corpo é investido por relações de poder e de dominação; mas em compensação sua constituição como forca de trabalho só é possível se ele está preso num sistema de sujeição (onde a necessidade é também um instrumento político cuidadosamente organizado, calculado e utilizado); o corpo só se torna força útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso. [12]

      O corpo é a produção, o favor é a submissão. Em Candunga, os corpos foram úteis até certo ponto, pois continuaram sendo produtivos, mas não mais submissos. A conscientização dos colonos pelo agrônomo Romário e seus desdobramentos, entre eles a morte do português João, quebraram o paradigma de exploração instaurado na zona bragantina. Ana e Josefa foram enviadas à cidade de Belém, mas sem relações com Rosinha. Candunga, o herói do romance, casou-se com Assunção e passou a cuidar das terras que lhe pertenciam de fato e de direito. Tereza morrera doente e desgostosa pelas intempéries familiares, e Gonzaga fugira após o assassinato de João Portuga.
      Em Candunga, com a temática dos retirantes vindos para a Zona Bragantina, tendo como herói um nordestino, ressalta-se, sem surpresas, que o romance termina como começou, entoando um futuro esperançoso, não à família de Candunga somente, e sim, aos colonos da área. “O povo quer botar um nome na Colônia, mas não de político, nem de santo. Um nome assim com as palavras que o doutor [Romário] dizia para eles[13]. O nome da colônia, Novo Porvir, sintetiza todo este sentimento expresso ao longo do romance. Por meio do labor e contra as injustiças instauradas há tempos no local, os colonos tentam viver uma vida nova desde o início do romance, passando por dificuldades diversas e terminando sua saga, literalmente, na esperança de um novo porvir, já “que havia um símbolo de redenção, no batismo de luz daquelas terras[14].
     




[1] MENEZES, Bruno. Candunga: cenas das migrações nordestinas na zona bragantina. In: Obras Completas, v.3, Ficção. Belém: SECULT, 1993. (pp. 99-100).
[2] SCHWARZ, Roberto. As ideias fora do lugar. In: Ao Vencedor as Batatas. 4ª ed. São Paulo: Duas Cidades, 1992, p. 16.
[3] Ibidem, pp. 119-120.
[4] “Mas podemos sem dúvida ressaltar esse tema geral de que, em nossas sociedades, os sistemas punitivos devem ser recolocados em uma certa ‘economia política’ do corpo: ainda que não recorram a castigos violentos ou sangrentos, mesmo quando utilizam métodos "suaves" de trancar ou corrigir, é sempre do corpo que se trata - do corpo e de suas forcas, da utilidade e da docilidade delas, de sua repartição e de sua submissão”. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 29ª ed. Petrópolis: Vozes, 2004, p. 24. A punição, no romance de Bruno, seria a própria situação vivida pelos colonos da zona bragantina. Para nós, a produtividade e a submissão dos corpos em Candunga são latentes no que diz respeito aos colonos trabalhadores e, principalmente, às meninas Ana e Josefa.
[5] MENEZEZ, 1993, p.185.
[6] Ibidem, p. 201.
[7] Ibidem, p. 202.
[8] Idem/Ibidem.
[9] Ibidem, p. 150.
[10] Idem/Ibidem.
[11] Ibidem, p.185.
[12] FOUCAULT, 2004, pp. 24-25.
[13] MENEZES, 1993, p. 238.
[14] Ibidem, p. 239.
Artigo meu publicado na revista El Hablador n° 18, uma revista virtual peruana de literatura. Comentem!!!



Espaço, história e literatura no romance Candunga, de Bruno de Menezes



Penso ser importante que, antes de qualquer análise, o autor da obra de referência para este trabalho seja apresentado. Bento Bruno de Menezes Costa ou, simplesmente, Bruno de Menezes, nasceu no bairro do Jurunas, em Belém do Pará, no dia 21 de março de 1893 e faleceu em Manaus, no dia 02 de julho de 1963. Sua obra poética , primeiramente, fora fortemente influenciada pela estética simbolista, "antes de qualquer coisa, a música", no início da década de 1920, e que daria o tom em grande parte de sua obra literária, não é à toa que Bruno é chamado de "Poeta da lua". Mas aos poucos, devido às influências da Semana de Arte Moderna, em São Paulo, no ano 1922, a veia modernista pulsou mais forte. Para o professor Francisco Paulo Mendes (apud MENEZES, 1993, p. 09), Bruno de Menezes foi o grande arauto do estilo modernista na região amazônica, destacando um de seus primeiros versos, no poema Arte Nova, já no ano 1920, antes da Semana de 1922, no qual o poeta diz: "Eu quero uma arte original".


De acordo com dados fornecidos pela família do escritor, há um depoimento do historiador do Modernismo nas regiões Norte e Nordeste, Joaquim Inojosa, que confirma Belém do Pará como a terceira capital do país a aderir ao movimento modernista no Brasil, por isto a relevante alcunha de introdutor do Modernismo na Amazônia a Bruno de Menezes. Em 1923 o escritor fundou a revista Belém Nova, mola propulsora e propagadora das novidades estéticas advindas do sudeste brasileiro no estado do Pará. 

Bruno teve seus trabalhos e suas críticas reconhecidos. Fez parte da Academia Paraense de Letras, da qual chegou a ser presidente, ocupando a cadeira número 32, e ganhou prêmios referentes aos seus escritos, no Pará e fora do estado. Suas obras publicadas foram:

Poesia: Crucifixo (1920); Bailado Lunar (1924); Poesia (1931); Batuque (1931); Lua Sonâmbula (1953); Poema para Fortaleza (1957); Onze Sonetos (Prêmio Cidade São Jorge dos Ilhéus – Bahia – 1960);

Folclore: Boi Bumbá – Auto Popular (1958); São Benedito da Praia – Folclore do Ver-o-Peso (1959);

Estudo Literário: À Margem do “Cuia Pitinga” (sobre o livro de Jacques Flores - 1937);

Ficção: Maria Dagmar (novela – 1950); Candunga (romance – Prêmio “Estado do Pará” - 1954).

O romance Candunga, de acordo com Azevedo, foi escrito em 1939, mas sua primeira publicação editada foi em 1954. A obra é fruto das observações de Bruno de Menezes quando este fora funcionário da Secretaria de Agricultura do estado do Pará. A ida de Bruno a diversas localidades com o intuito de monitorar o seu povoamento o fez entrar em contato com pessoas diversas, de culturas variadas e de diferentes classes sociais. O referido romance faz referência à migração nordestina para a zona bragantina, localizada no nordeste paraense, durante o povoamento ao longo da Estrada de Ferro de Bragança, que unia os municípios de Belém e Bragança. Sendo mais preciso, a narrativa conta a saga de uma família de cearenses (o patriarca Gonzaga, a esposa Tereza, as filhas Ana e Josefa, o afilhado Candunga e a agregada Assunção) contra as intempéries vividas em solo amazônico, principalmente, a relação com os comerciantes do local (João Portuga, Minervino Piauí e Salomão Abdala) que se diziam donos das terras ocupadas pelos retirantes.

Tenho neste breve trabalho o intuito de se abordar a relação do espaço com as personagens em Candunga, ressaltando aspectos culturais e identitários, estabelecendo as devidas relações com a história enquanto reflexo dos referidos aspectos.

Tratando-se de história, a Estrada de Ferro de Bragança tem um sentido peculiar frente a outros empreendimentos de porte semelhante na Amazônia. Enquanto que ferrovias, como a Madeira-Mamoré, por exemplo, serviam para o escoamento da produção, no caso desta ferrovia, do látex, buscando uma integração e desenvolvimento amplos, a Estrada de Ferro de Bragança tinha um objetivo bem mais local, discreto: a ligação via ferrovia dos municípios de Belém e Bragança, bem como o desenvolvimento dos núcleos agrícolas no trecho ao longo da E.F.B., para o melhor abastecimento destes dois municípios, os maiores da região nordestina paraense à época da construção da via férrea.

Um número considerável de migrantes veio como parte do projeto de colonização desta área devido à construção da estrada de ferro que uniria os municípios de Belém e Bragança; outra parte veio a reboque do imaginário que, ainda hoje, perpassa a região amazônica, lugar de fartura, progresso, solução para todo e qualquer problema vivido por aquele que a ela chega. No entanto, em Candunga,o tom de progresso vem por meio do apito do trem, que se aproxima trazendo consigo a idéia de mudança positiva e, ao mesmo tempo, de mazelas pelas regiões por onde passa, transportando carga, gente humilde que, no geral, não vai acompanhar a velocidade do trem da modernidade e vai se manter, tradicionalmente, à margem desse pseudo-desenvolvimento, proporcionado pelo avanço do capitalismo.

Em 05 de fevereiro de 1883, um representante da empresa “Estrada de Ferro de Bragança” chegara a Belém trazendo a proposta ao governo provincial para que fossem iniciados os trabalhos. Em junho do mesmo ano, após atender às exigências governamentais, a referida empresa assinou o contrato e foi a responsável pelo início dos trabalhos. O assentamento do último trilho, já no município de Bragança, deu-se a 03 de maio do ano de 1908 (CRUZ, 1955, p.92), quando a Estrada de Ferro de Bragança foi oficialmente inaugurada por completo.

Durante o período de expansão e colonização, ao longo da Estrada de Ferro de Bragança, uma grande leva de migrantes, brasileiros e estrangeiros, foi para a região da zona bragantina, com o objetivo de povoar a área. A história oficial nos conta que, no início do século XX, a colonização da referida região contava mais de 10.000 colonos; destes, cerca de 8.000 eram nordestinos, sendo quase 6.000 cearenses. Os outros grupos, com quantidade relevante, de brasileiros pertenciam aos estados do Pará, Maranhão, Piauí, Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco. O restante dos colonos era composto por pessoas oriundas da Itália, Bélgica, Cuba, Portugal, Estados Unidos, Suécia e Espanha, este último país responsável pela maior quantidade de colonos estrangeiros na zona bragantina nesse período, com mais de 1.500 espanhóis. 

Apesar do aparente progresso que a vinda dos migrantes dava à região, com todos os benefícios dados, os gastos com a manutenção dos grupos eram enormes e contribuíram para que, aos poucos, o projeto “Estrada de Ferro de Bragança” se tornasse muito dispendioso para o governo paraense. Por conta disto, em 1909, iniciou-se o processo de arrendamento da E. F. B. ao governo federal, pelo então governador Paes de Carvalho. Em junho de 1936, a Estrada de Ferro de Bragança passou definitivamente para as mãos da União e funcionou plenamente até 1965, ano de sua desativação por ordem do então ministro dos transportes, Juarez Távora. Nossa obra de referência, Candunga, desvela muito da realidade amazônica da zona bragantina, ressaltando-se os conflitos culturais e agrários.
A questão espacial tem uma enorme relevância dentro do contexto do romance, por isto serão destacados aqui alguns conceitos referentes a essa temática para que se possa analisar de que forma o espaço é referenciado em Candunga.   
    
Segundo Borges Filho, são quatro os conceitos básicos que compõem o nível espacial: espaço, lugar, paisagem e território, cada um com a sua especificidade. Vão-se aqui destacar algumas destas especificidades. 

O espaço estaria relacionado ao nível da abstração, ligado ao cosmos, ao vácuo em uma concepção astrológica. Por ser abstrato, é considerado um campo subjetivo, imaginado por um sujeito; enquanto o espaço éabstrato, o lugar é concreto, relacionado à experiência, a relação de um corpo com os outros. Para Milton Santos, o lugar é a existência manifestada por meio “de um cotidiano compartido entre as mais diversas pessoas, firmas, instituições-cooperação e conflito são a base da vida em comum” (apudBorges Filho, 2007, p. 20.); a paisagem seria o espaço estendido, posto ao olhar e que se subdivide em paisagem natural, que não sofreu ou que pouco sofreu a influência do homem, e paisagem cultural, que sofreu bastante influência humana, também está estreitamente ligada a uma questão estética de beleza, à forma; o território está ligado a uma definição geográfica, como uma jurisdição e onde sempre está estabelecida, segundo Foucault (ibidem, p. 28.), uma relação de poder que gerará, indubitavelmente, desigualdades. 

Em termos gerais, no que diz respeito à literatura, o lugar pode diretamente influenciar e ser influenciado pelas personagens, estabelecendo, dessa forma, uma relação dialógica com as mesmas. Observem-se os trechos seguintes:

Desconhecedores dos valores de nossas essências florestais, repetindo o tradicionalismo de seus patrícios, que transplantam a aridez, em vez do florescimento, Gonzaga e Candunga derrubaram sem conta nem medida uma vasta porção de mata, onde caberiam centenas de tarefas plantadas, que seriam totalmente colhidas, se o seu cultivo fosse tecnicamente organizado. (Menezes, 1993. p. 120).

O êxodo de lavradores do nordeste, em conseqüência dos anos de penetração e do povoamento precário na zona bragantina, com a introdução de hábitos tipicamente ‘cearenses’, como se tornou generalidade chamar aos métodos desses inconstantes migradores, tem transformado completamente a primitiva fisionomia social da região. (Ibidem, p. 202).

O trecho acima acaba por estabelecer relação entre cultura, identidade e terra. Tal trecho nos revela, por meio do narrador, a existência de um marco, de um divisor de águas que é a chegada dos nordestinos à zona bragantina, proporcionando a experiência do contato entre o caboclo amazônico da referida área e o nordestino migrante, modificando as características do lugar, alterando a paisagem, ou, como diz o narrador, “transforma(n)do completamente a primitiva fisionomia social da região”. No entanto, para nós, estes trechos contêm falas bastante deterministas que generalizam o migrante e escamoteiam a falta de estrutura do local, pondo o nordestino como o responsável pela destruição desmedida da mata.

Ou seja, a migração nordestina, para a região da zona bragantina no contexto de Candunga, desestabilizara a ordem até então instaurada. Com o progresso econômico dos colonos, após a intervenção do agrônomo Romário, o qual lhes conscientiza da exploração pelos senhores de terra João Portuga, Abdala e Minervino Piauí, há uma maior circulação de dinheiro, fomentando vícios e gerando comércios de toda espécie, da venda de animais à prostituição, criando as necessidades impostas pelo avanço da modernidade. Observe-se o trecho a seguir:

Há quem compre dúzias de tiras completas, para ficar rico de uma vez. Os cafés, as quitandas, as vendas, vivem cheios de gente, procurando em que se distrair, em que gastar o “cobre”. O víspora, a sueca, o gamão, o trinta-e-um, o quino, o bacará-corrido, passam a ser jogados a dinheiro; e as mulheres da vida afluem de todas as localidades. (Ibidem, p. 200).

Traços de uma modernidade deficiente implementada na região estão presentes neste trecho, anterior, inclusive, à chegada dos migrantes nordestinos, os quais são colocados pelo narrador como uma das molas propulsoras para o aparecimento dos vícios, para a destruição da mata, o que se torna improvável devido à condição de subalternidade na qual chegara o nordestino. Ou seja, o migrante apenas se valia das condições precárias que lhe eram dadas.  Percebe-se que se pode aplicar o conceito de paisagem às alterações vistas nos trechos supracitados. Quando o narrador nos fala em transformação, destacam-se dois níveis, as transformações na paisagem natural, com a queima de grande parte da mata para o cultivo de plantações diversas de forma não sustentável, e as transformações na paisagem cultural, com a introdução de hábitos diferentes das práticas do caboclo amazônico, no espaço da zona bragantina. 
     
A questão social aliada ao desconhecimento da área e de seus valores pelos nordestinos são as causadoras de tais mudanças, pois é necessário para o migrante cultivar a terra para a sua subsistência, por outro lado, os laços culturais do nordestino não podem ser rompidos a partir de sua chegada em outro lugar, gerando os conflitos explicitados pela fala do narrador. 
     
Em consequência da (con)vivência espacial, repartida por amazônidas e nordestinos migrantes, as culturas e as identidades diversas afluem em território amazônico, revelando a diversidade presente na região, no entanto, a obra também revela o aspecto segregador de considerar a cultura do caboclo superior à cultura do nordestino migrante. Observe-se o trecho a seguir:

O caboclo tem outra sensibilidade artística na sua música, nas suas danças, na sua religião, no seu espírito de comunidade.
Disso resulta, que para animar “dançarás”, para as festas de arraial, com novenários, ou ladainhas, ser preciso contratar músicos da região do salgado, os chamados “caboclos”, e até da capital do Estado, para os festejos católicos e profanos, dos santos padroeiros, pois os “cearenses”, só sabem se divertir ao som da sanfona, da viola sertaneja, em cantorias monótonas e saudosas. (Ibidem, p. 203).

Na conjuntura do romance de Bruno, pode-se observar que há a forte presença de um discurso étnico-cultural em prol do caboclo, uma resistência identitária frente à chegada do outro, do nordestino. O discurso do narrador coloca o caboclo na fronteira da modernidade, um partícipe e, ao mesmo tempo, um resistente à chegada da mesma, estando fort/da, o para lá e para cá, para frente e para trás, nos dizeres de Bhabha (2007, p.19), pois a vinda de migrantes à região da zona bragantina representa, teoricamente, o avanço em termos sócio-econômicos. No entanto, no romance, percebe-se a contradição existente quando as relações sociais e econômicas se estabelecem, principalmente no que diz respeito ao lugar enquanto parte de uma cultura.
      
A descrição instigante de dois lugares peculiares dentro do romance nos chama a atenção. O barracão no qual mora a família de Gonzaga e a “vila” são dois pontos extremos em Candunga. O primeiro, apesar das condições insalubres, guarda a esperança de ventura da família de retirantes, enquanto que o segundo representa a desagregação familiar, principalmente após a ida de Ana e Josefa, filhas de Gonzaga, para a casa do português João. 
Observem-se os trechos a seguir que descrevem o entorno e a moradia da família de retirantes:

Gonzaga manda o afilhado buscar as mulheres para a tôsca habitação e ficarem todos juntos, menos afastados dos terrenos de seu roçado. O lugar é ermo, não há vizinhos, de modo que ficam isolados, naquela tristeza absorvente. (Menezes, p. 123).

Compõe-se de dois pequenos compartimentos a mísera choça. Na divisão da frente, manchadas de sangue negro, das picadas das pragas, estão as “tipóias” dos homens, suspensas do travessão; na separação do centro, de certo mais convidativas, a rede das mulheres, armadas, sem lençóis nem mosquiteiros. Num canto do quarto, esfumaçado da luz do querosene, nota-se o lugar das lamparinas; e pelo chão irregular, de barro batido, amarelo e úmido, visíveis cusparadas de “masca” denunciam a marca de um vício antigo. (Ibidem, p. 128).        

Este lugar denota a situação vivida pelos cearenses em solo amazônico. A atmosfera de miséria da barraca influencia o sentimento de duas personagens. Ana e Josefa. Gonzaga, Candunga, Tereza e Assunção estão resignados perante tal conjuntura, mas esperançosos na melhoria de vida com base nos seus esforços e, após a colheita do plantio, em um clima próspero e sem tensionamento, mesmo com as grandes dificuldades existentes. Já as duas meninas não se conformam com a situação, achando que aquele não é ambiente adequado para gozarem da sua mocidade, pois não se ligam ao trabalho e, com o passar do tempo, dão sinais de que querem sair dali. Todos “trabalham satisfeitos, menos Ana e Josefa, que, às vezes, não escondem o desgosto de estar metidas num serviço brabo, que expõe ao sol e lhes tira a macieza das mãos” (ibidem, p.123).

Observe-se o trecho abaixo que descreve a “vila”, ambiente desejado pelas moças:

Vilório, incipiente e atrasado, estão ali as tabernas, as pensões para dormidas e refeições, as lojas de quinquilharias; ali rezam-se as ladainhas, festejam-se os santos padroeiros, com foguetórios e leilões, em frente da pequena capela; ali se fazem os bailaricos, com harmônica, violas e cantorias, que às vezes terminam em sérios conflitos, com ferimentos e mortes; ali se abrem as bodegas para os goles e mais goles de “cachaça marvada”; ali se encontram a jogatina, as raparigagens contagiosas. (Ibidem, pp. 123-124).

Este lugar é o gerador da discórdia familiar. O anseio de Ana e Josefa para voltar à “vila” acaba por desagregar a família de retirantes. Ambas, sob o consentimento do pai, partem para a “vila”. Gonzaga pensara que as meninas iriam passar pouco tempo em tal local, enquanto as coisas se resolviam pela colônia, mas, convencido das más intenções de João, manda buscá-las por Candunga:

Candunga dá o recado de pé. E pior do que um escarro na cara é a resposta recebida:
- Vamos não, Candunga. Diga pra pai, mais mãe, que não vamos. Não queremos saber do mato. Aqui temos tudo. Ninguém pode obrigar nóis a í...
– Vamos não! Se pai qué nega pra trabalhá, que alugue! Sêmo mais besta, não! Daqui só saímos morta!... (Ibidem, p.186).

A “vila” abriga os “coronéis” que exploram os colonos; é o local de perda da inocência de Ana e Josefa; trata-se do lugar em que Gonzaga assassina Portuga. Ou seja, é o ambiente da desgraça familiar dos retirantes, pois saindo da calmaria da barraca na colônia, tem-se outro lugar, mais dinâmico, porém vil, prejudicial ao que os retirantes estavam habituados. 
A “vila” traz os tensionamentos à família, influenciando diretamente na vida das seis personagens moradoras do barracão, e na vida de outras personagens relacionadas. Este é um lugar ainda em caráter embrionário de urbanidade, sendo o marco para início do processo de hibridação cultural no romance. Então, pode-se observar que cada lugar provocou reações distintas em algumas personagens do romance de Bruno de Menezes. 
      
Gonzaga, Candunga, Tereza e Assuncão estavam felizes com o progresso que se avizinhava em terras outras, vivendo no barracão, enquanto que Ana e Josefa eram puro descontentamento. Em contrapartida, as duas meninas estavam felizes, vivendo no cotidiano da “vila”, enquanto que seus parentes estavam preocupados e tristes por tê-las distante e em um local em que os vícios estavam cada vez mais próximos, deixando-as suscetíveis às tentações do vilarejo, necessidades criadas com a chegada da modernização. A barraca e a “vila” são lugares que influenciam e que são influenciados de maneira distinta, mas trazendo consequências decisivas para o desenrolar do romance. O entorno da barraca na colônia criou feições nordestinas após a chegada da família de retirantes, principalmente no que diz respeito ao uso da terra. A “vila” teve sua rotina alterada após a chegada das belas moças, Ana e Josefa. A partir da crise entre os dois espaços, tem-se a separação de Ana e Josefa de sua família, a morte de Tereza e a fuga de Gonzaga após assassinar o português João. 
Pode-se perceber clara a influência do lugar dentro do contexto do romance, afinal, os deslocamentos espaciais, e consequentemente os sócio-culturais, evidenciam o enredo no que diz respeito à cultura, à identidade e à hibridação em Candunga. 

O lugar como afirmação da identidade por meio do discurso pedagógico do narrador de Candunga que desencadeia o choque entre culturas e classes sociais e as crises decorrentes deste choque, como marco inicial do processo e hibridação, permeia os acontecimentos no romance de Bruno de Menezes, no qual a terra é objeto valioso, tanto para os colonos, trabalhadores esperançosos em dias mais venturosos, quanto para os senhores de terra, ávidos por lucro, independentemente do que façam para consegui-lo, tentando preservar a cultura da exploração. 
       
Ao longo do romance, mudanças, no que diz respeito aos aspectos sociais, econômicos e culturais, foram implementadas, logicamente que algumas tiveram um preço alto, como mortes e prostituição, mas isto apenas confirma que abalos na estabilidade de uma sociedade produzem configurações sociais novas, produtos das interrelações sócio-culturais existentes, criando identidades, fazendo parte de um grande mosaico que hoje se chama de pós-modernidade. 
      
Com este breve estudo, busca-se propor uma pesquisa acadêmica sobre a formação cultural da Amazônia por meio dos estudos literários, com ênfase no escritor Bruno de Menezes. Desta forma, destaca-se a relevância da obra em termos literários, históricos e culturais, contribuindo para os estudos sobre a proveniência desta diversidade cultural na Amazônia, acerca da ocupação de vários grupos e seu impacto para a região, descortinando a heterogeneização cultural presente na parte amazônica que foi por nós, aqui, destacada: a zona bragantina. Ressaltando, desta maneira, o quanto a literatura é importante para os estudos de relevantes aspectos condicionados sob a égide sócio-histórica e cultural.          



BIBLIOGRAFÍA

AZEVEDO, José Eustáchio de. Literatura Paraense. Belém: SECULT, 1990.
.
BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.

BHABHA, Homi K. O Local da Cultura. Belo Horizonte: UFMG, 2007.

BORGES FILHO, Osíris. Espaço & literatura – introdução à topoanálise. São Paulo: Ribeirão Gráfica e Editora, 2007.

CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. 3ª ed. São Paulo, Edusp, 2000.

CRUZ, Ernesto. A Estrada de Ferro de Bragança: visão política, econômica e social. Belém: Falangola, 1955.

JOSEF, Bella. O lugar da América. In: X Encontro Regional da ABRALIC - Sentidos dos lugares. Anais do X Encontro Regional da ABRALIC, 2005, pp. 114-129.

LOUREIRO, João de Jesus Paes. Cultura Amazônica: uma poética do imaginário. Belém: CEJUP, 1994.

MENEZES, Bruno de. Candunga: cenas das migrações nordestinas na zona bragantina. In: Obras Completas, v.3, Ficção. Belém: SECULT, 1993.

TODOROV, Tzvetan. O homem desenraizado. Rio de janeiro – São Paulo: Record, 1999.


© Rodrigo de Souza Wanzeler, 2010