Morena e mundana como ninguém
(...) Aproxime-se então da natureza. Depois procure, como se fosse o
primeiro homem, dizer o que vê, vive, ama e perde. Não escreva poesias de amor.
Evite de início as formas usuais e demasiado comuns: são essas as mais difíceis,
pois precisa-se de uma força grande e amadurecida para se produzir algo de
pessoal num domínio em que sobram tradições boas, algumas brilhantes. Eis por
que deve fugir dos motivos gerais para aqueles que a sua própria existência
cotidiana lhe oferece; relate tudo isso com íntima e humilde sinceridade.
Utilize, para se exprimir, as coisas de seu ambiente, as imagens de seus sonhos
e os objetos de suas lembranças. Se a própria existência cotidiana lhe parecer
pobre, não a acuse. Acuse a si mesmo, diga consigo que não é bastante poeta
para extrair as suas riquezas. (...)
Rainer Maria Rilke (Cartas
a um jovem poeta)
Não
tardarei em elucidar os versos de Rilke, no entanto é necessário a priori
ressaltar a grandeza e coragem existentes na realização de um concurso de
literatura em uma conjuntura tão paradoxal quanto a que estamos vivenciando, na
qual se está tão perto e ao mesmo tempo tão longe da poesia que emana das
coisas. Nas proximidades de seus 396 anos, Belém, essa “pequena” imaculada do
Bar do Parque, merecia há tempos um presente desse porte, uma justa e singela
homenagem em forma de arte, a “mangueirosa” revista, revisitada, ressignificada
em verso e prosa. Tem-se, com um
concurso dessa envergadura, a oportunidade de vir à tona a verve artística de
poeta adormecida em muitos e desconhecida em outros, bastou-se a fagulha de um
certame literário para acender a fogueira do amor, da paixão, da prostituição,
da morte, da religião, elementos inerentes a nossa e a tantas outras cidades,
elementos que desvelam, que chocam, pois a arte não está aqui para escamotear a
realidade presente no cotidiano, e sim para revelá-la, provocar o leitor para a
percepção e reflexão acerca de algo que muitos não enxergam. Os textos deste
livro desnudam uma Belém barrocamente oposta, santificada e prostituída, bela e
fétida, ensolarada e chuvosa, fazendo-me lembrar da sutileza nos versos de
Manuel Bandeira e da acidez inexorável das palavras de Max Martins, oposição
que se faz presente nos veios de uma Belém que possui um cotidiano rilkeano, do
qual o poeta se vale para extrair a seiva da poesia em uma drummondiana luta
com as palavras, para que em tão pouco espaço seja dita uma infinidade de
(re)significações. No entanto, a luta não foi em vão. A luta pela arte nunca é
em vão. À maneira de Rilke, os poetas conseguiram penetrar no âmago do
cotidiano belemense e sugaram-no como se este fosse a última fruta de uma velha
mangueira prestes a cair no meio de um mundo concreto, composto por pessoas
concretadas, embrutecidas pelo tempo... Porém, a poesia está lá, rompendo o
concreto e o embrutecimento, trazendo vida à existência (pasmem, entre vida e
existência não há sinonímia) de uma cidade velha por vocação, linda por devoção
e poética apenas pelo fato de ser,
cidade morena e mundana que a ninguém pertence!