segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Prefácio do livro O Cotidiano da Cidade


Morena e mundana como ninguém
(...) Aproxime-se então da natureza. Depois procure, como se fosse o primeiro homem, dizer o que vê, vive, ama e perde. Não escreva poesias de amor. Evite de início as formas usuais e demasiado comuns: são essas as mais difíceis, pois precisa-se de uma força grande e amadurecida para se produzir algo de pessoal num domínio em que sobram tradições boas, algumas brilhantes. Eis por que deve fugir dos motivos gerais para aqueles que a sua própria existência cotidiana lhe oferece; relate tudo isso com íntima e humilde sinceridade. Utilize, para se exprimir, as coisas de seu ambiente, as imagens de seus sonhos e os objetos de suas lembranças. Se a própria existência cotidiana lhe parecer pobre, não a acuse. Acuse a si mesmo, diga consigo que não é bastante poeta para extrair as suas riquezas. (...)
Rainer Maria Rilke (Cartas a um jovem poeta)
Não tardarei em elucidar os versos de Rilke, no entanto é necessário a priori ressaltar a grandeza e coragem existentes na realização de um concurso de literatura em uma conjuntura tão paradoxal quanto a que estamos vivenciando, na qual se está tão perto e ao mesmo tempo tão longe da poesia que emana das coisas. Nas proximidades de seus 396 anos, Belém, essa “pequena” imaculada do Bar do Parque, merecia há tempos um presente desse porte, uma justa e singela homenagem em forma de arte, a “mangueirosa” revista, revisitada, ressignificada em verso e prosa.  Tem-se, com um concurso dessa envergadura, a oportunidade de vir à tona a verve artística de poeta adormecida em muitos e desconhecida em outros, bastou-se a fagulha de um certame literário para acender a fogueira do amor, da paixão, da prostituição, da morte, da religião, elementos inerentes a nossa e a tantas outras cidades, elementos que desvelam, que chocam, pois a arte não está aqui para escamotear a realidade presente no cotidiano, e sim para revelá-la, provocar o leitor para a percepção e reflexão acerca de algo que muitos não enxergam. Os textos deste livro desnudam uma Belém barrocamente oposta, santificada e prostituída, bela e fétida, ensolarada e chuvosa, fazendo-me lembrar da sutileza nos versos de Manuel Bandeira e da acidez inexorável das palavras de Max Martins, oposição que se faz presente nos veios de uma Belém que possui um cotidiano rilkeano, do qual o poeta se vale para extrair a seiva da poesia em uma drummondiana luta com as palavras, para que em tão pouco espaço seja dita uma infinidade de (re)significações. No entanto, a luta não foi em vão. A luta pela arte nunca é em vão. À maneira de Rilke, os poetas conseguiram penetrar no âmago do cotidiano belemense e sugaram-no como se este fosse a última fruta de uma velha mangueira prestes a cair no meio de um mundo concreto, composto por pessoas concretadas, embrutecidas pelo tempo... Porém, a poesia está lá, rompendo o concreto e o embrutecimento, trazendo vida à existência (pasmem, entre vida e existência não há sinonímia) de uma cidade velha por vocação, linda por devoção e poética apenas pelo fato de ser, cidade morena e mundana que a ninguém pertence!      

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